segunda-feira, 15 de maio de 2023

FOCO NOS BASTIDORES

 


FOCO NOS BASTIDORES 


Acordou logo cedo num dia comum que se iniciava com o sol ainda encoberto. Manteve a luz do banheiro acesa depois que se vestiu por lá tentando evitar barulhos. A farda havia sido deixada em cima da tábua de passar para não ter que abrir o guarda-roupa, de madrugada, com receio que o sono da companheira fosse interrompido.

Enquanto calçava os sapatos, pensava sobre sua "vida maquinada" de apertar botões, acionar alavancas e estar sempre no mesmo horário fazendo a coisa certa há mais de vinte anos. Sabia da importância do seu trabalho para as pessoas que precisavam se deslocar todos os dias. Durante esse tempo, havia casado, constituído família e, naquele momento, sentia-se o mesmo homem, apenas com alguns cabelos brancos a mais no bigode.

Olhou para o quepe com a logomarca da companhia bordada com fios brilhosos. Seu motivo de orgulho, pois no subúrbio onde morava era respeitado por ter um emprego estável. Sua educação escolar só lhe permitiu ir até ali. Inocentemente, havia sido colocado em uma sala com o propósito de estudar coisas desnecessárias sem saber que o futuro de um filho de maquinista estava sendo preparado para seguir a carreira do pai.

Engoliu um café com pão, ovos e uma fruta. Enquanto comia, seus olhos não deixavam de examinar o relógio na parede. Ainda faltava mais de uma hora para sair de casa, tempo suficiente para lavar a louça, despreocupadamente. Durante a lavagem, ficou pensando o que haveria de encontrar pela frente. Requisitou uma força superior para lhe guiar durante o percurso sem precisar recorrer a algum artifício para manter a serenidade. 

Apesar da rotina, sentia-se feliz e dono da situação ao puxar a corda do apito. Eram movimentos simples, porém carregados de significados: anunciava que a locomotiva estava saindo; que era o momento do adeus para os que ficavam e também dos familiares derramarem lágrimas com "saudade antecipada ou aliviada." À tardinha, estaria de volta para mais uma noite comum em família. 

Depois de enxaguar a xícara, último utensílio doméstico a também ser secado e guardado, colocou o maço debaixo d'água e em seguida no lixo jurando que nunca mais voltaria a fumar. Seus filhos reclamavam, sua mulher também, e ele já se sentia cansado pelo vício mantido desde a adolescência. A partir dali, seria um homem renovado.  

Folheou o álbum de família deixado em cima da mesa com o propósito de relembrar o pai morto em um acidente "descarrilante." Viu sua mãe em fotografia quando ainda o conduzia nos braços e demorou-se olhando, de forma carinhosa, para sua irmã maior agarrada à saia da mãe querendo se esconder do "olha o passarinho."

Deu a última mexida no feijão e desligou o fogo. Acondicionou-o junto com o arroz e um pedaço de galinha cozinhada no dia anterior e fechou a marmita. Abriu-a novamente para colocar a banana que havia esquecido. Naquele dia, sentia uma "energia estranha", entretanto podia ser da mudança de hábito que havia decidido. Seu pai fumava, seus tios também, e foram eles que o haviam incentivado a se tornar "homem de verdade," pois naquela época quem não fumasse era malvisto.

Foi ao banheiro e fez o que sempre fazia antes de sair. Aliviado, saiu de casa.  O dia ainda permanecia com o véu noturno e o cão do vizinho o esperava balançando a cauda. Ele jogou o biscoito costumeiro divertindo-se com a corrida desenfreada do cachorro para os arbustos que rodeavam a calçada. Todos os dias, naquele horário, homem e animal se confraternizavam. Fazia frio, porém o blusão de couro abotoado até o pescoço fazia dele um protegido. 

O guarda noturno passou a cavalo acenando, e lá na frente retornou para conversar sobre as assombrações avistada naquela noite. Chegou à estação ainda se divertindo com as histórias e os medos do guarda. 

Bom dia! Dirigiu-se para a cabine e colocou os motores para funcionar. Os vagões já estavam quase cheios demorando só mais alguns minutos para partir. Seu semblante mudou depois do apito de despedida. Agora teria que administrar o acidente. Parou a locomotiva. Após recolhido o corpo da mulher, foi dado permissão para seguir viagem. Acelerou sentindo a falta do charuto que acendia toda vez que a rotina era quebrada, e mais agora que foi fatal, a vontade de conter a excitação com nicotina veio de forma devastadora.  Conseguiu segurar o desejo de pedir "fumo" aos colegas de trabalho, já que não queria quebrar o trato com a divindade a qual pediu auxílio. 

Durante a viagem, só se falava do vestido que a mulher usava quando se atirou debaixo dos trilhos. Os ajudantes vinham sempre à cabine de comando saber quem era a suicida, e ele também estava na mesma. 

Havia traído o marido, disseram-lhe no final da viagem. Ao regressar para casa, foi abordado pela esposa. Eu soube que uma mulher se atirou debaixo do seu trem hoje pela manhã. Sim, foi terrível olhar aquele corpo partido ao meio. Uma mulher bem vestida, bonita, jovem. Soube que tinha uma filha, disse ele colocando a marmita vazia em cima da pia. Deixe que eu lavo. Foi se sentar, e enquanto tirava os sapatos a esposa insistia nos detalhes. Sabe o nome dela? Disseram-me o nome, mas eu não a conhecia. Como chamava-se? Uma tal de Anna Karenina, sabe quem é? Não!


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 15.05.2023 - 08h54min.



2 comentários:

  1. Da vida real, surgiu o romance Anna Karenina. Deste, o belo musical protagonizado por Keira Knightley. De ambos, nasceu seu conto. As boas histórias assumem novas roupagens e resistem ao tempo. - Gilberto Cardoso dos Santos

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  2. É verdade, Gilberto. Hoje tive o prazer de saborear palavra por palavra colocada nesse texto de forma consciente. A cada elemento que surgia, chegava a sensação de que algo artístico permanecia movendo minha pena. Foi emocionante reviver o romance de Tolstói em poucas linhas, e olhe que nem havia planejado, mas isso só foi possível com a certeza de saber que se tem onde publicar. Minha gratidão a vocês que fazem a APOESC e que abriram o canal de experimentação literária, como vejo essa oportunidade. Não tem dinheiro que pague o constante desafio de estar produzindo com o intuito de inovar e melhorar cada vez mais. O que era difícil, está se tornando, cada dia, um prazer imensurável. Obrigado de coração!

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