domingo, 19 de fevereiro de 2023

MUITO ALÉM DO TRAMPOLIM - Heraldo Lins



 MUITO ALÉM DO TRAMPOLIM 


A mocinha se equilibrava na plataforma com as pernas para cima enquanto o mundo todo assistia àquela disputa por uma medalha de ouro. Naquele momento, seus braços representavam vários anos de treinamento, e agora só precisava de apenas alguns segundos para dizer se tinha valido a pena todo o esforço. Cair em um perfeito salto triplo e fazer a alegria da família, esse era o objetivo. Depois dali, iria treinar outras modalidades na escola de natação do seu irmão, o descobridor de talentos.


Seu pai suava e tremia quase a ponto de um infarto. Ainda bem que tinha tomado o remédio para pressão, mesmo assim havia o risco de um segundo internamento. Nessa hora, veio-lhe o pensamento de quando pegou no colo aquela recém-nascida vermelha de chorar. Sabia que estava agindo como um alienado, mas a vaidade misturada com um caráter dominador, fazia-lhe emocionado. E se ela falhar? também terei falhado, falava consigo enxugando a testa no lenço do patrocinador.


A atleta sabia da responsabilidade que abatia sobre seus ombros. Queria estar em outros abraços longe daquela cobrança toda, porém tinha consciência de ser mais uma treinada em fazer os gostos da família, e por sempre almejar total atenção dos pais, achou melhor aceitar os pedidos insistentes para que se tornasse a pessoa a estar ali segurando a respiração por mais três segundos até o salto decisivo.


Com nove ponto oito, a primeira colocada chegara em clima de "já ganhei" e parecia que a medalha almejada ficaria com ela mesma, sem dúvida alguma. Naquela disputa acirrada, poucos percebiam que aquele esporte servia para que nos subterrâneos dos negócios conseguissem parâmetros para a escolha de mais uma matriz digna de receber a genética dos vencedores. O patrocinador das duas já havia planejado encontros com seus representantes masculinos para uma futura família planejada. Cabia ao mais velho herdeiro do conglomerado de artigos esportivos, o prêmio da condecorada em primeiro lugar naquela olimpíada. Nos bastidores, isso já havia sido discutido e amadurecido não restando dúvidas quanto ao resultado final. 


A mãe permanecia roendo as unhas por saber que "daqui a pouco" sua filha estaria sendo avaliada pela rígida comissão julgadora. A história se repetia. Via seu sonho, frustrado à época de atleta universitária, renovado naquela do alto. O tempo parecia ter parado junto com as pernas alinhadas que agora chegara ao ponto perfeito do equilíbrio. Não havia nem chance de um grito de incentivo, pelo contrário, a exigência do comitê abrangia silêncio absoluto até dos espectadores. 


A um segundo do salto, o pai viu tudo escuro. Espreguiçou-se na cadeira coberta de sombra e viajou no túnel de choques elétricos. Seu corpo estremecia numas avassaladoras contrações espumantes e, sem exprimir qualquer som que denunciasse seu estado de vida cancelada, ali mesmo ficou invisível para quem por perto estava. Já dentro d'água, a menina-moça, apesar de ter percebido no último instante o sangue da primeira menstruação escorrendo, conseguiu nota dez.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 18.02.2023 - 12h42min




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