sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

DESAPEGO FORÇADO



DESAPEGO FORÇADO


Um homem admirava a paisagem juntamente com a mulher e os meninos, naquele final de tarde. Era raro o domingo em que a garrafa de suco não anunciasse o piquenique. Para isso, o pai juntava algumas horas extras para o bolo e os pastéis fornecidos pela sobrinha a preço de custo. Seu trabalho diminuído só lhe permitia aquele esbanjar compensado pelo brilho da felicidade estampado naqueles três pares de olhos que passavam a semana inteira comentando o último passeio. 


Na volta para casa, as crianças só falavam na vontade que tinham de passear nos barcos que avistavam lá de cima. O meu é aquele maior, dizia a menina no final da fila amparada pelo pai fã. O outro retrucava que seria o comandante conhecedor dos milhões de mares, pois já sabia que bombordo referia-se ao lado esquerdo de uma embarcação. Havia decorado e isso era motivo de orgulho repetido para os demais que o interrompiam para não serem obrigados a ouvir, incansavelmente, sobre estibordo e as luzes representativas do código náutico.


No caminho estreito do regresso, todo cuidado é pouco para evitar o despencar no desfiladeiro, dizia a mãe carregando na cabeça o balaio de coisas. Eles já tinham costume, assim como o cão farejador que sabia de cor onde pisar, só que seu instinto de predador falou mais alto ao avistar um roedor saindo do esconderijo. Não tinha como escapar, porém a sorte foi maior do que a do cão. Num descuido escorregadio, os meninos ficaram sem o mascote há tanto acompanhando a família. Ninguém pode ir buscá-lo para um enterro digno, entretanto, no dia seguinte, urubus fizeram a festa, observados pelas crianças que perderam aula para chorar lá do alto. Ainda jogaram pedras, mas passavam longe. 


A menorzinha, na noite anterior, nem conseguiu dormir direito com tantos pesadelos. Sonhou que criava asas e no último instante da queda, seu cão lhe escapou das mãos; mais para a madrugada, sonhou que ele era julgado por um satanás em forma de esquilo, e seu castigo foi o de cair para cima eternamente sem nunca encontrar onde firmar as patas. Sabendo que não tinham condições financeiras para mandar rezar missa, resolveram voltar.


Enquanto quebrava pedras, o homem pensava no cão espatifando-se daquela altura. Poderia ter ralhado com ele, todavia no momento que se iniciou a perseguição se encontrava atrás da moita. Tudo foi muito rápido, até o vestir das calças.

 

Não sabe nem se valeria a pena continuar a fazer economia para o próximo domingo. Foi chocante não poder fazer algo. Os sonhos das crianças seriam mudados. Se persistirem com a ideia em irem trabalhar em navios, jamais esquecerão aquela tragédia. 


As dúvidas de um pós-morte entraram em seu lar. Aquele cão preto, com um olho verde e outro amarelo, já fazia, há cinco anos, parte da família. Eram gratos a ele, por ter salvo um dos meninos de um ataque de puma. Teria que conversar com as crianças sobre os planos a partir de agora. 


Com o psicológico abalado, a família ceou em silêncio. Coube à mãe ordenar que comessem e que Trovão seria substituído. Não, não quero outro cachorro, correu chorando a menina para o colo do pai. Calma, isso passa! Não quero comer! Só me lembro dos urubus brigando pelas tripas de Trovão. Hoje à tarde eu fui lá e vi um deles saindo de dentro da carcaça, disse o mais velho acrescentando que tinha tentado matá-los com pedras de funda. 


A mãe levantou-se juntando os pratos no momento em que a sobrinha entrava com um dos filhotes de Trovão. As crianças desmancharam os "nós das caras" ficando ainda mais entusiasmados quando perceberam que o presente tinha um olho azul e outro esverdeado.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 17.02.2023 - 14h53min



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