domingo, 18 de setembro de 2022

PREVENDO A REALIDADE - Heraldo Lins

 


PREVENDO A REALIDADE


O dia estava quente com as nuvens fazendo sombras no mar. A visão panorâmica lhe trazia paz e sempre se apresentava diferente a cada amanhecer.   

Havia banhistas ao longe lhe deixando dúvidas se gostaria de descer a ladeira para participar da farra mulher/natureza naquelas ondas límpidas e cadenciadas. 

Em frente à sua varanda, todo aquele início de águas, aparentemente sem fronteiras, servia de adubo para sua vaidade. Ao receber visitas, muito lhe interessava ouvir os elogios sobre sua aquisição. Outros apartamentos existiam por perto, mas com aquela vista eram poucos. Nem pelo dobro do que havia investido, alguém poderia comprá-lo. Não estava à venda, fosse qual fosse a oferta. 

Sempre aquele cartão postal seria motivo de orgulho, contando ainda com um parque protegido pelas leis ambientais. Tocar na areia ou mesmo mergulhar, já não era seu objetivo. Acostumara-se em apreciar a beleza com uma pontinha de altivez enquanto apreciava o encontro do céu com o oceano, da sacada do vigésimo andar. Isso era a verdadeira poesia viva, com ondas, ventos e sóis, pois no seu poema havia mais de um sol, o natural e o dele em plena concepção do eu engordado. 

Gostava que o desjejum fosse servido na mesa bistrô, e quando de férias, nem saía para outros lugares. Ali recebia pessoas de outras nações que vinham apreciar a paisagem, por isso viajar não mais lhe despertava interesse.  

Quando criança, aquele prédio nem existia. Com o tempo a cidade foi alargando seus tentáculos e hoje é um dos lugares mais valorizados. Naquela época, ele vinha do interior banhar-se naquele mar que nem imaginava ser por ele apreciado dali. Mais tarde, o bosque seria usado para namorar escondido. Achava sempre um lugar para se esconder na vegetação nativa. Fazia o que fazia sem sonhar que houvesse perigo de ser pego por alguém do mal. De certa forma, aquelas aventuras eram pouco vigiadas. As queimaduras, no outro dia, faziam parte da identificação de ser bem articulado entre as que lhe ensinavam a arte do amor. 

As louvações, quanto a ser bairro turístico, não paravam de crescer. Tudo acontecia naquela praia. As inocentes meninas do interior, com suas marmitas prontas para o almoço, sumiam pouco a pouco dando lugar a barracas que até para se sentar cobravam taxas. Passou a ser frequentada por larápios em busca de uma oportunidade, enquanto as pessoas mais abastardas foram saindo para condomínios distantes. Um dia, chegou ao poder um que defendia novo plano diretor. Ele nunca ouvira falar nesse tipo de plano, por isso não acompanhou as discussões para tal elaboração. Antes do final do ano, o projeto para construção de arranha-céus foi votado e aceito sem restrições. O tempo passando e as construções, inicialmente inofensivas, passaram a impedi-lo de ver a praia, depois o coqueiral, o morro e por último o mar, que ele tanto se vangloriava de ter sido captado pelas suas lentes. 

O que restou foi somente a luz do sol com um pouco de brisa sendo barrada pelos prédios à sua frente. Não conseguia pensar qual seria a solução. Poderia ter economizado para comprar um dos recém-construído e ficar ostentando seu troféu para os familiares que, por sinal, moram por lá sem ao menos convidá-lo. 

Os dias seguem-se angustiados e ele nem mais se dar ao trabalho de ficar onde costumava. Enfurnou-se no computador e passou a escrever suas memórias, e essa é uma delas.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 17.09.2022 ─ 18:14



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”