domingo, 11 de setembro de 2022

CORDA DE AMARRAR VIDA - Heraldo Lins

 


CORDA DE AMARRAR VIDA

Veio procurar a sonhada oportunidade para sair sem que ninguém soubesse. O rosto lavava-se com algumas lágrimas naquela noite fria quando uma senhora, bem vestida, aproximou-se. Sabe onde posso tomar um café? pergunta-lhe sorridente. Não, não sei. Só quero ficar só, respondeu percebendo que aquela senhora queria algo mais do que o café. Por mais que escolha ficar sozinha, disse a senhora, sempre haverá alguém a lhe acompanhar, nem que seja no pensamento.  

Olha para o lado e não encontra nenhum trem aproximando-se. Os guardas da estação permanecem sonolentos no ritmo do pouco movimento. Todos agem olhando para o relógio como se estivessem presos aqueles braceletes. 

De repente, uma coruja lança-se entre os trilhos agarrando o pequeno roedor sendo observado por ela que olha para o pássaro até ele se perder na escuridão. Assim como aquela presa, seu destino está traçado, diz olhando, com vagar, os painéis de arte. Percebe vultos se movendo por trás das pinturas feitas em tons vivos. A maioria dos guichês estão fechados, com exceção das máquinas eletrônicas, todas, como de praxe, contrastando com o resto da penumbra. 

A idosa pergunta baixinho para onde está indo uma tão bela moça àquela hora da noite. Não estou indo para lugar nenhum. Aqui é o meu ponto final, responde ela com a ideia fixa de se jogar no próximo trem que passar. Já que não tem para onde ir, pode dormir na minha casa que fica aqui pertinho. Não estava ali para começar um anova amizade, longe disso, queria acabar com todas que construíra, isso sim, era o que queria. 

Havia um clima de anormalidade acontecendo com aquela que estava querendo ser sua amiga. Isso é ridículo. Deu as costas e afastou-se sem se preocupar se havia sido mal-educada. Pouco importava, já que não precisava ser mais fingida. 

Mesmo longe do calendário, a lua cheia aparece chamando sua atenção. Procura recuperar o fôlego sentando-se num banco logo adiante. Os outros, na sua percepção, haviam desaparecidos só restando aquele em que estava sentada. Volta seu olhar para os trilhos que estavam brilhando até onde a vista alcançava. Percebeu mais ratos sendo caçados. Será que ainda há trem vindo para que ela pudesse executar seu plano? E se não houvesse? Não queria perguntar aos guardas nem à velha que permanecia parada onde ela a deixara. 

Sentiu fome, mas para onde ia não precisaria se alimentar nem retocar a maquiagem. Nesse momento, outra mulher de preto senta-se ao seu lado. Vira o rosto em direção à velha e não mais a encontra. A ocupante do banco tem um aspecto pálido e os olhos refletindo os raios da lua.  

Desculpe-me incomodá-la, mas sabe se há algum trem nesse horário, pergunta-lhe a outra que há pouco havia sentado.  Não, não sei, estou sentada aqui esperando minha tia que foi tomar um café, e logo voltará para irmos para casa. Eu perdi o trem de ainda há pouco e nem sei como fazer até amanhã pela manhã. Dizem que é perigoso a pessoa dormir nesse banco, pois há muitas ladras, mas eu não sou uma delas, pode ficar tranquila. Não tenho medo, até por que os guardas estão me dando proteção. Ela olhou em direção onde antes havia guardas, mas naquele momento nenhum sonolento se encontrava por perto. Além do mais, há câmeras em toda a parte. Elas só servem de enfeite, disse a mulher acendendo um cigarro.  

As desconfianças só aumentavam de acordo com o passar da noite, e, para piorar, naquele exato momento uma nuvem deixou a lua totalmente encoberta. Se ela não tinha medo de se matar, muito menos de uma pequena escuridão. Talvez seja melhor sairmos daqui, sugeriu a outra.  Pode ficar à vontade, minha tia está vindo. Ela já era para estar aqui. Veja, os quiosques já fecharam. Só há os mendigos e cães dormindo. Se você quiser ir pode ir, vou esperá-la aqui, aconteça o que acontecer. 

Virou-se para certificar-se que não havia mais ninguém do outro lado da estação. Ao voltar-se, a outra mulher havia sumido dando lugar a um gato deitado aos pés do banco, fitando-a. Vira-se, mas havia um homem ao seu lado impedindo-a, com seu corpanzil, que ela pudesse enxergar na outra direção. Levantou-se na máxima rapidez indo até a beira dos trilhos. 

A lua voltou a brilhar. Não quis espiar para trás para não deixar vestígio de algum medo. Ouviu um apito ao longe. O homem havia sumido e o gato também.  O frio, trazido pelo vento aumentado, retorna. Ela prepara-se para se jogar. Vê os faróis barulhentos se aproximando.  

Nenhum temor em fazer o que vinha decidindo há dias.  Apoia-se rente aos trilhos com as mãos espalmadas no piso do degrau sujo. Seu vestido está se amassando, porém dessa vez não se importa com isso. 

Nunca havia pensado com tanta liberdade como naquele momento. Lembrou-se dos bens que possuía, dos filhos, da carreira na magistratura, enfim, do marido desaparecido. O casamento já não estava tão bem, a filha com compulsividade e o filho não mais lhe obedecia. Sentia-se envergonhada por terem lhe flagrado com um colega no banheiro. Ela que sempre pregou os bons-costumes em casa, na repartição... Seu nome sendo riscado depois de polido durante anos de intenso trabalho. Retraída, nunca quis que alguém soubesse das suas paixões secretas usufruídas nas viagens de trabalho. Dessas lembranças, surgiu a vontade de ser dona do seu destino. Já chega de ir “como uma onda no mar.” Tinha fome de liberdade, e essa era a única vontade genuína. Seu sonho, finalmente, seria realizado.  

Enquanto toma consciência que o caminho será sem o sofrimento da espera, olha novamente para o trem se aproximando. Parece que passou vinte anos, e na verdade foi apenas frações de segundos.  Fecha os olhos numa paz jamais alcançada constatando que queria viver decidindo em ir para longe da vida. Ela sente o degrau puxando-a para permanecer sentada como se fosse um grandioso ímã. 

Ainda com os olhas fechados, imagina as rodas de ferro lhe esmagando. Continua calma com o plano de abrir os olhos no momento exato. Queria ter consciência do momento anterior ao ato. Estava disposta a fazer aquilo com muita simplicidade, como se coloca a mão na água. Apenas mais um ato como outro qualquer. Seria em vão criar expectativas. Um dia teria que acontecer, que fosse hoje. 

Seus problemas ficaram sem validade. Agora era o prazer em dominar-se diante de um algo tão condenável.  Mais uma vez, avista longe, na imaginação, alguém lhe chamando. Não quer voltar. Tudo está consumido, pensa ela no semblante calmo que nunca tivera. Ele está diferente, aquele que a chama para seus braços. Quem será? Não faz sentido estar abraçada com quem não conhece. Tenta se desvencilhar. Sua temperatura permanece caindo sem motivo aparente.  

Sente alguém lhe beijando, e nesse beijo o homem dá-lhe oxigênio para libertá-la daquele coma. O marido ao lado com os filhos, conta-lhe que ela desmaiou em seu trabalho e foi trazida para o hospital. Ela olha para o lado e vê a velha saindo do seu quarto e lhe dando adeus e dizendo: por mais que você quisesse, hoje não era o seu dia.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 11.09.2022 – 09:57



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