domingo, 17 de julho de 2022

CONFISSÕES DE UM RETRATO - Heraldo Lins



 CONFISSÕES DE UM RETRATO


É chato ficar sempre olhando para Leonardo, disse Mona Lisa. Eu poderia estar bordando ou cuidando dos meus filhos, mas tenho que ficar repuxando os cantos da boca e isso já está me deixando com os queixos dormentes. Ainda bem que não preciso fazer nenhuma performance com o nariz. Basta permanecer sem expirar, disse da Vinci recomendando-me que se eu expirar perco o cachê.

O ruim é que esta manhã me deu uma frouxidão nas tripas e tenho quase certeza que se me levantar escorre na perna. Não vou nem pedir para ir ao banheiro porque ele chegou com uma "catinga" tão grande de conhaque vencido que acho melhor nem contrariá-lo. 

Há dias que Leonardo chega fora de hora e eu sou obrigada a almoçar à noite. Ontem mesmo ele chegou no momento da minha sesta, e foi luta eu conseguir permanecer acordada. Este emprego está me matando. Minhas nádegas ficam latejando durante as quatro horas diárias que fico sentada sem poder me mexer. Esta semana tive uma cãibra que me fez ficar com a boca torta durante uns quinze minutos, mas ele disse que foi o melhor momento de repuxado de boca que consegui e que vai usá-lo para imortalizar-me. 

Aproveitei a empolgação e pedi-lhe aumento de salário. Nunca tinha visto ele tão irado a ponto de jogar tinta em mim, mas como sou rápida,  abaixei-me e nem me sujei. Bem feito, gritei no momento em que corria em direção ao quarto da escrava escondendo-me até passar o surto. Ele demorou a ir embora, pois ficou aproveitando a tinta derramada para completar a paisagem por trás de mim, e eu achava que exercer a profissão de modelo era fácil. Já nem posso encontrar-me com minhas amigas para fofocar no chá das cinco, porém, foram elas que me aconselharam a contratar um rapaz para ficar ao meu lado com o objetivo de  fazê-lo se acalmar, mas meu marido não quer transformar nossa casa em um bordel, por isso tenho que aguentá-lo sozinha com seus lundus.

Na semana passada ele ficou três dias ausente, e quando voltou a pintar foi luta para que eu conseguisse reaprender o sorriso irônico.

Conviver com Leonardo da Vinci não é nada fácil. Ele tem uma mania de apontar meus defeitos chegando a dizer que vai fazer uns retoques para que eu possa parecer mais bonita do que realmente sou. Eu tenho consciência da minha beleza, mas ele fica dizendo que não. Aponte um defeito, desafiei-o! Sua papada, disse ele de forma jocosa. Vou tirar a do pescoço, mas as pálpebras inchadas e caídas, não vou mexer! 

Fiquei mordida de raiva, mas me contive, e se ele não fosse tão famoso acredito que eu já tinha saído desse projeto. Espero que o quadro pague o sacrifício que estou fazendo em aturá-lo porque se eu não receber o dinheiro do cachê compatível com o desgaste emocional, toco fogo e vou embora.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.07.2022 - 13:45



2 comentários:

  1. É isso aí, Heraldo. Essa expressão enigmática da Mona Lisa dá de fato margem para muito imaginar. - Gilberto Cardoso

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