domingo, 17 de julho de 2022

PELA MORAL E PELA FAMÍLIA MERICOENSE - Aldenir Dantas

 


Pela moral e pela família mericoense


Eram meados dos anos 60 quando o Cabo Militão chegou a Mericó, acompanhado da esposa e de um filho pequeno. Sua fama de defensor da ordem, da moral e dos bons costumes logo se espalhou pela região. Jamais um policial fora tão severo em relação à moralidade. Na mira das suas ações repressoras estavam as mulheres solteiras, as moças bulidas ou faladas, indesejáveis à sociedade.


Seu maior orgulho era haver participado da Segunda Guerra Mundial, mesmo não havendo dado nem um tiro, sequer. Quando seu navio chegou à Itália, a guerra havia acabado. Empertigado, de voz possante e gestos teatrais, comandava e assustava o alunato nos desfiles de Sete de Setembro. Um grito seu, diante da manobra errada de um aluno, fazia estremecer toda a escola.


Respeitadíssimo em Mericó. Por pouco, as pessoas não lhe prestavam continência. Tão rígida era a sua disciplina militar que dela não abria mão nem no ambiente doméstico. A esposa e o filho, como eternos recrutas humilhados, viviam sob o peso das suas botas.


Um homem íntegro, um exemplo de patriota, um pai de família invejável. Era de um prefeito assim que Mericó precisava para acabar com o desavergonhamento reinante na cidade. Essas e outras assertivas do gênero passavam de boca em boca na conservadora cidadela. A mulher e o filho, ouvindo tais comentários, esboçavam um sorriso amarelo e, intimamente, meneavam a cabeça em tom de desaprovação.


O coro dos conservadores foi ganhando força e, dez anos após a sua chegada,  estava o Cabo disputando as eleições municipais para prefeito. Sentindo que, quanto mais liberava sua índole ultraconservadora e violenta, mais ganhava fama e eleitores, abriu mão das poucas reservas que tinha no falar e pouco faltava para levar seus seguidores à histeria com frases do tipo:


— Não faz diferença se o sujeito roubou um milhão ou uma galinha. Ladrão é bandido e bandido bom é bandido morto! Se não matar, deve ter, pelo menos, uma mão cortada pra não roubar nunca mais.


— Mulher da vida, moça falada... Esse “povim” tem de ficar da sala do meio pra cozinha. Essa gente na rua, além de ser uma vergonha para a sociedade, incentiva outras à safadeza.


— E pra acabar com essa vagabundagem, vocês sabem que conselho não resolve. Então, o jeito é na pancada. Cipó de Mororó no lombo de cabra ruim: comigo é assim!


— Mericó vai voltar pros trilhos, e vocês vão se orgulhar de morar nessa cidade de homens de bem, tementes a Deus e dedicados às famílias.


Até com o conhecido tirador de terço da cidade, Zé Pezin, o Cabo andou implicando. Certa vez, sem motivo algum, o conduziu à delegacia onde de forma, ora autoritária, ora jocosa, lhe fez uma série de perguntas descabidas sobre sua sexualidade. Isso porque Zé nunca casara e era cheio de delicadezas.


Sua implicância com o rapaz não foi muito além porque, mesmo sendo achincalhado e chamado, às escondidas, de Zé Mulher, era muito querido pela comunidade devido aos relevantes serviços ali prestados no trato com doentes, no cuidado com os mortos, nas rezas, na arrumação da Igreja.


Para o senso comum, Zé era um rapaz caridoso e sem vícios: não bebia, não jogava, não fumava... Só fazia o bem. Por isso, estrategicamente, o Cabo não o incomodava tanto. Contudo, deixara bem claro no calor dos seus discursos que, se pegasse um cabra safado metido com sem-vergonhice com outro macho, matar não matava não, mas baixava-lhe as calças, dava-lhe uma surra de urtiga e o expulsava da cidade.


Naquele sábado, munido de uma lata de minhocas, um anzol e um litro de conhaque, seguiu o Cabo cedinho para a sua apreciada pescaria no poço de Manezim. Como sempre, acompanhado do inseparável amigo de caçadas e pescarias, Zeca de Tuca, jovem não muito afeito ao trabalho que, paradoxalmente, desfrutava da sua amizade.


À hora do almoço, não chegou em casa. Havia algo errado. Jamais deixara de sentar à mesa às
11h, exceto, quando estava em algumas diligência. Mesmo respirando mais aliviada com sua ausência, a mulher preocupou-se com aquela quebra do seu protocolo militar. Esperou até às duas horas da tarde e, movida pela certeza de haver ocorrido algo grave, chamou uma vizinha para irem ao rio em busca do marido.


Encontraram-no com o amigo. Dormiam à sombra de uma Baraúna, à beira do poço. Pelo visto, haviam se excedido na bebida e na amizade. Silenciosamente, voltaram as duas para a cidade. Contudo, a esposa não perdeu a oportunidade de registrar sua passagem por ali.


Às três horas, calçando apenas uma bota, entrou o cabo em casa com sua tradicional sisudez militar. Dirigiu-se à mesa e sentou-se à cabeceira, Estranhou a presença da esposa, impassível, sentada à cabeceira extrema e olhando-o fixamente. Fingindo ignorar a presença da mulher, levantava o protetor do prato contra moscas quando imobilizou o gesto diante do que viu.


Não mais olhou para a esposa. Inicialmente, corou. Depois fugiu-lhe o sangue do rosto. Palpitação. Tremura. E os olhos fixos no que acabara de ver. Não se sabe quanto tempo passou naquele transe, diante do olhar fixo e perscrutador da mulher. Em seguida, de olhos grudados no chão, levantou-se vagarosamente, dirigiu-se ao quarto e ali fechou-se até a manhã seguinte.


À mesa, ficou sua esposa por um longo tempo olhando, ora a porta atrás da qual o marido se encerrara, ora a bota que trouxera do rio e colocara no lugar do seu almoço.


Como se dizia em Mericó, o Cabo Militão anoiteceu e não amanheceu. Tomou o ônibus das cinco para a capital e de lá transferiu-se para a cidade de São Miguel, extremo oeste do Estado.


O porquê do seu sumiço, em meio a uma campanha eleitoral garantida, permaneceu um segredo entre as duas amigas. Melhor dizendo, entre elas e Zeca de Tuca, o amigo de pescarias.
 


Aldenir Dantas



.

Um comentário:

  1. Muito bom. Deixa o leitor criar o próprio final. Parabéns Aldenir. Heraldo Lins

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”