sexta-feira, 15 de julho de 2022

QUEBRANDO PEDRA - Heraldo Lins

 


QUEBRANDO PEDRA


Preencher uma página sem uma receita ou mapa torna-se um grandioso desafio. Busca-se assunto no cafundó do Judas e, muitas vezes, como agora, só vem mesmo a dificuldade em fazê-lo. E o pior é que quando se deita as palavras, a verdadeira essência do texto só é mostrada com todo o seu esplendor, depois que é lido com indiferença. Parece que num primeiro momento a mente reúne os neurônios para torcer a favor da ideia, e depois que são dispensados da missão, aparece outros tipos de células especializadas em detonar o trabalho. É como se houvesse pensamentos especialistas em empurrar e outros em puxar. 

O que chamamos de aperfeiçoamento poderia ser o estágio em que os puxadores resolvem descansar e avaliar friamente a atual produção. É de conhecimento de quase todos que o próprio texto se modifica cada vez que se avança nele. Uma palavra colocada no final às vezes tem reflexo em um vocábulo inserido no início, e todo o texto tem que ser realinhado, colocado no esquadro para evitar uma visível aparência de aleijado. Mesmo assim, o aleijo permanece aos olhos dos pedreiros de plantão, nesse caso, o escritor recebe esse nome ao ficar na condição de leitor. 

As experimentações continuam sendo feitas, sendo uma delas ir escrevendo ao léu para depois apagar, cortar as arestas e deixar o essencial. Na maioria das vezes isso não funciona e quando funciona o trabalho é triplicado. É um puxa daqui, um encolhe de lá, que é melhor perder um pouco mais de tempo pensando no início do que mergulhar por mergulhar. 

Escrever em jejum, fazendo o corpo passar por privações de comida e água, também é uma forma de espremer as ideias, e às vezes o resultado é bem melhor. Mas no todo ainda deixa a desejar. O ideal era que se escrevesse um esqueleto de texto e o leitor fosse completando de acordo com o seu entendimento, assim, estaríamos livres de críticas e desprezos. Usar-se-ia traços para que o leitor completasse, mas correríamos o risco de um livro só conter traços, e isto já existe nos cadernos. O livro seria rebaixado a caderno, coisa que ele jamais aceitaria. 

O livro que se preza tem que ter citações e notas de rodapé para se sentir diferente do caderno. Já imaginaram Don Quixote de La Mancha ser comparado a um caderno de bodega? Seria um alvoroço! A Bíblia, o Alcorão, e outros livros tidos sagrados, iriam ficar de mal com os bodegueiros. E se a moda pega, daqui a pouco até caderneta entra nesse rol, e, mais adiante, o papel higiênico reivindicaria seus direitos, assim como o papel de enrolar prego. No papel de enrolar prego seria lido o seguinte: "hoje estou abraçado com esses seres compridos e duros, mexendo-se dentro de mim, rasgando-me todo. Apesar de eu ter uma fama de grosseiro, nessa hora tenho inveja da delicadeza do papel higiênico,” esse era o discurso angustiado do papel que quase chegou a ser papelão. 

 Coitado do livro! Desprezado e ridicularizado, deixaria de existir. Tudo que fosse dito estaria nos smartphones misturados com kkkkk, e assim não existiria essa trabalheira que é escrever.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 14.07.2022 - 21:31




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