domingo, 17 de abril de 2022

COMPETIÇÃO INFINITA - Heraldo Lins



 COMPETIÇÃO INFINITA


O tempo tortura sem piedade. Não só por ir levando as lembranças boas, mas por levar a robustez dos músculos, entupir veias e dilatar estômagos. Sorrateiramente, deixa crianças esperançosas para se verem livres dos pais. 

O poder do tempo é demasiado. Espera o momento certo para explodir bombas, expelir bebês ou enterrar viventes. Tomamos, naturalmente, posse do que não nos pertence, e com o tempo não é diferente: inventamos o relógio para domesticá-lo. 

Agora o tempo está mostrando que é possível roubar a consciência. Antigamente ovo era o vilão da alimentação, com o passar do tempo, tornou-se o herói. Nesse nosso tempo, a ordem do dia é se movimentar. Vá para a academia, dizem os especialistas. Para os portadores de fibromialgia até que dá certo, mas para quem tem problema nos joelhos, é o inverso. 

Convenhamos que uma máquina em movimento constante se quebra mais rápido, eis um dos motivos de os hospitais estarem com filas enormes. Passamos a acreditar que é preciso correr, fazer musculação, mesmo que não possamos subir um degrau devido às dores musculares. Estamos no tempo do exercício físico, e quase ninguém questiona. 

Para não me sentir prisioneiro do tempo e seus modismos, resolvi fazer um trato. Combinei assim: só tenho um dia de existência e vou fazer o que realmente me faz bem. Agora, neste instante, quase meia noite, significa que estou indo embora junto com a data, e só me resta esperar as badaladas para fazer novos planos.  

Antes das badaladas, escuto, aqui perto, um grito. Pelo avançar da hora, numa rua quase deserta, percebo que se trata de um adolescente uivando o nome de Talita. Os lobos nessa idade fazem isso para a lua. Ele, para Talita. Onde andará a loba para quem ele tanto grita? O tempo sabe e me informa que eles estão no tempo da sintonia de hormônios, ou seja, o tempo não vive só de modismos.   

Deixo uivos e hormônios passarem e concentro-me no tempo que tenho. Cheguei à conclusão de que o tédio, ou mesmo a angústia, é a falta de controle sobre a vida, então, resolvi fazer uma planilha. 

Comecei hoje, ao acordar, seguindo o que estava na planilha, e nesse final de experiência cotidiana, registro o que planejara: pensei em acordar às seis. Qual a perna que colocaria no chão primeiro? Resolvi colocar a esquerda por motivos políticos. Levantar-me devagarinho por orientação médica, foi outro cuidado. No momento, penso na espessura das artérias: finas como folhas de seda. Se me levantar de vez, pode acorrer um rompimento. Como é difícil manter-me vivo. 

Caminho para o banheiro. Vejo uma mancha de sangue na toalha. Só agora percebo que veio do rosto barbeado. O sangue me enganou. Saiu do corte sem minha permissão e nem planejamento. 

Saio para o café da manhã. Fecho o apartamento e desço. É costume averiguar, e detecto um pneu vazio. Mesmo o tempo tentando desconstruir minha serenidade, troco-o, e a ida ao borracheiro entra na margem de ajustes.  

Meia hora depois estou no hotel. Vacilo ao pegar a comanda. Havia telefonado ontem e me disseram um valor pelo café, hoje, já é outro. Desta feita, o tempo sorrir da minha ingenuidade em pensar que tudo permanece sem inflação. 

Vou até o buffet. Neste momento quem sorrir sou eu. Agora o tempo está sendo meu refém. Faço questão de massacrá-lo sentando-me de frente para o mar e perguntando-me se as ondas não têm algo mais importante para fazer de que ficar se quebrando naquela areia sem pegadas. 

O tempo interfere dizendo que estou perdendo-o com pensamentos banais. Discuto com ele: será se tudo que fazemos tem que ter um propósito? Estou apenas querendo perder tempo, e nem isso eu posso fazer?  

Saciado, saio para o pátio. Avisto o farol em cima das dunas. Que romântico deve ser ficar olhando o farol orientar os navegantes. Esse pensamento levou-me para o interior dos barcos no rio Amazonas. Uma cabine foi meu foco quando viajei durante dez dias por lá. Uma imagem remete a outra imagem. Pensei em fazer tudo como havia planejado, todavia, nem pensei que teria que ficar atento para os pensamentos que viriam. Isso demonstra minha falta de perfeccionismo. Pergunto novamente: quem planeja meus pensamentos? Agora o tempo some. Esqueço o relógio, os segundos parecem horas e volto-me para a voz feminina à minha frente. 

Falamos de finanças enquanto um beija-flor saboreia o néctar no jardim próximo. O Jardineiro chega com um balde, rega as plantas, uma a uma, e fico escutando minha interlocutora. Ela fala da bolsa de valores, da riqueza gerada só por especulações, e olho para o homem que há muito, imagino, rega plantas. Qual será o seu conhecimento em relação às especulações. 

Especulo sobre sua vida. Tem cara de chefe de família, usa óculos de grau, cinquenta anos, passou a vida inteira dando de comer aos beija-flores de forma indireta. Seu trabalho repercute na vida daquele pássaro e na minha, que uso para devaneios. 

Deu-me sono comer além do normal. Tinha que fazer valer a comanda pré-fixada. Um dia por ano reservo para ir ao hotel saborear o que há de mais luxuoso em matéria de comida. 

O beija-flor está lá todos os dias fazendo o que não posso ter como minha rotina. Volto para casa. Ganhei do tempo, entretanto, perdi para o beija-flor.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Santa Cruz/RN, 15.04.2022 – 23:27



2 comentários:

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