sexta-feira, 25 de março de 2022

NO CÍRCULO DA VIDA - Heraldo Lins

 


NO CÍRCULO DA VIDA 


 Ela estava na cadeira de rodas. Ao lado, a cuidadora mostrando fotos que pouca atenção era dada. Passei de carro e ela acompanhou-me com os olhos cansados, a cabeça disforme pela idade avançando a giros lentos. Do outro lado, um campo bem verdinho, com traves e tela bem cuidadas. Aquela anciã lutou muito para estar ali sentada, imagino. Nem sabe o que estão fazendo com ela, e por um fio de memória, é que percebe que está viva. Busca-se mantê-la ligada. É como um rádio com baterias fracas. Só o chiado se escuta. Voz de comando é necessário para dizer-lhe que vão lhe dar banho, amanhã, logo cedo. Ela sorrir, aliás, é quase somente o que faz ultimamente.

Aquela senhora está ao lado da neta que brinca de bonecas. Se a cadeirante viver mais dez anos não a verá mais por perto. A neta nem sabe, mas estará  buscando outras formas de se divertir. A natureza está se programando para fazê-la abandonar a avó em busca de um parceiro. Sua trajetória será repetida tal qual o exemplo do farrapo humano à sua frente. Será que a neta avançará tanto na idade? Terá a virtude de envelhecer? Grande virtude essa: esperar a morte chegar. 

Mas ninguém pode questionar a morte. Por que eu? Mate outro. Não se pode escolher se morre ou se vive. Nem onde se vive se tem o direito de escolher. Adaptar-se é um termo chique para o conformismo. Não se tem opção. 

Atrás da neta há os pais conversando. Traçando planos para quando a velha morrer. Como será feita a divisão dos bens? onde ela será enterrada? e em qual cemitério? O homem sabe que terá alguns dias de folga, pela lei boazinha. Tanto que estudou para chegar à magistratura, agora se ver esperançoso em usufruir os feriados advindo da morte da mãe. Que beleza. Só espera que ela não morra no final se semana, assim gastará um pouco da sua folga exatamente nos dias que teria direito com ela viva. 

A cuidadora sorrir para agradar à família. Precisa manter o emprego, e a vida daquela é seu vínculo empregatício. Sua exaustiva jornada de 24 horas já passou da metade. Lavar aquele corpo envelhecido, enxugar as rugas de seios repuxados pelos filhos que teve na idade que daqui a pouco a neta alcançará, e, também, terá os seus repuxados.

 A neta está treinando para tomar casa com suas bonecas produzidas por ela e um marido que deve estar jogando bola no campinho à frente. Ela nem pensa nisso, mas o garoto que acabara de fazer um gol será o escolhido. Ele vibra com o gol e olha para o lado da casinha. Não sabe porquê acha bonito aquela cena com a menina brincando. Sua genética sabe, mas não conta para ele. Seria muito fácil a vida se ele descobrisse o que está por vir. Nem desconfia por que a velhota está ali perto. Sabe apenas que está dificultando sua aproximação para conversar com a menina. Pelo seu enquadramento a neta é uma namorada. Por ele, não existiria cadeirante, cuidadora, nem pais, apenas ele e ela. 

Está na hora de recolher vovó para dormir. Aliás, é bom quando ela está na cama. Não atrapalha o trânsito dentro de casa. Vamos, vovó, dormir. A cuidadora olha a hora rezando para passar o tempo. Seu emprego está matando-a. Quem será que cuidará dela? Se fosse idosa hoje, não teria como custear suas despesas. Se pudesse receber dinheiro para se suicidar e deixar uma casa para cada filho, faria isso sem pestanejar. Mas não! Precisa servir sem a certeza que será servida. Daqui a vinte anos não será mais contratada. Agora tem força para manusear a idosa. Aos sessenta ninguém quer uma idosa cuidando de outra. Quem sabe seus filhos farão isso. Mas, pelo que vê no trabalho, não é esse o proceder de filhos. Querem se ver livres, e com ela não será diferente. Arrepende-se de ter tido eles. Estão longe, e quase não aparecem. Assim como aquela netinha que será enganada pelos hormônios sexuais, ela foi. Não sente falta de homem, mas sim, da companhia de um deles. Está sozinha morando em uma casa do tamanho da sala dos seus empregadores. Acha melhor estar trabalhando de que naquele forno que chama de casa. A casa ela ganhou do governo. Sua residência foi estrategicamente planejada para que ela, quanto tantas outras que não tiveram oportunidades, sintam vontade de saírem para trabalhar. As casas foram feitas em parceria com o sistema de produção. Planejadas para desentocar escravos da senzala.

A netinha, por sua vez, está, sutilmente, sendo criada em uma mansão. Pensará dezenas de vezes antes de dar um passo em falso. Seu padrão viciante a fará estudiosa e educada na arte de comandar para não ter que se igualar à cuidadora.

A velha no meio do círculo social, interligando os satélites que a rodeiam, inclusive, um escritor que ia passando, na sua perspicácia, aproveitou e assistiu a um pequeno retrato da família da classe média, sem esquecer de ter avistado um gato deitado, mas o que é um gato numa família com tantos problemas?! É melhor nem falar nesse gato que tem uma vida melhor de que a da cuidadora.  


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 25.03.2022 − 09:01



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