quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

HÁ GANÂNCIA NA HISTÓRIA - Heraldo Lins

 


HÁ GANÂNCIA NA HISTÓRIA


— Ai! — gemeu a mulher ao parir o menino. A outra, em trabalho de parto, gemia desde a madrugada, e ela, apenas com uma interjeição, selou o nascimento. Este “ai!” foi apenas uma forma de contemplar a tradição da dor. Jamais iria desmoralizar uma das maiores dores sentidas pelo ser humano, por isso, teve a humildade de expressá-la. Se dependesse dela não seria necessário, mas correria o risco de ser malvista pelas parteiras. Diante dessa possibilidade, preferiu registrar esse pequeno desconforto quando das suas entranhas surgia uma vida.  

A criança nasceu rindo como se chegasse ao país das maravilhas. Olhava ao redor dando conta de tudo que estava acontecendo, isso se notava pela cabeça virando em direção aos sons que eram produzidos no ambiente. 

Ela estava ali com um filho no peito relembrando quanto foi penoso suportar as dificuldades da gestação. Faltava água de beber, sua comida era pouca e a fraqueza, muita. Seu pensamento estava avaliando os instantes de dúvidas sobre o aborto. Tinha pesadelos terríveis, mas acreditava que ele seria um bom homem, um cidadão de bem que lhe auxiliaria na velhice. Agora estava pronta para educá-lo nas tradições numéricas da família.  

O menino cresceu interessando-se pelo ábaco desde a mais tenra idade. Foi negociante de cabras, camelos, galinhas, porcos. Suas contas eram feitas “de cabeça”. Se os clientes não prestassem atenção ele comia os zeros. Falante e temperamental, adquiria riqueza com facilidade, entretanto, dava fim nos bordéis. Envolveu-se em várias brigas nas casas de jogos. Certa noite vendeu urubus por galinhas a um comerciante que vinha com sua caravana pelo deserto. Com pouca luminosidade, todos comeram e acharam bom urubu no alho e óleo fervido no caldeirão alugado por ele. O rapaz fazia todo negócio.

Perambulando pelas oliveiras encontrou-se com um grupo de nômades que precisavam de uma pessoa para tomar conta das finanças. Ele partiu na função de tesoureiro, juntando e anotando o dinheiro arrecadado pelos colegas. Sua contabilidade era impecável. Aqui e acolá saía para umas noitadas fora dos olhos da turma, mas ao amanhecer estava de volta. Muitas vezes deixava todo o capital nas tabernas, e, sendo que o líder do grupo não se preocupava com a prestação de contas, ele se dava bem. 

Tentou várias vezes investir em transporte marítimo, padarias e revenda de peixes, mas, tendo em vista que as decisões eram tomadas na coletividade, ele sempre era voto vencido. Os companheiros continuavam sem querer expandir os negócios, e ele se via muito cansado em levar aqueles fardos de dinheiros para cima e para baixo. 

Continuou angustiado por ser um cara de visão e aqueles barbudos estavam impedindo a expansão dos negócios. Por mais que preservasse a contabilidade em dia, faltava moedas para passar troco. As moedas eram escassas e muito valiosas. Para ele, era melhor que fosse convertido o patrimônio em moedas, só assim as chuvas não destruiriam. Sua obsessão por moedas se tornou meta número um a curto prazo. Ele trocava duas notas de dinheiro por uma moeda. Certa vez conseguiu fazer um negócio que lhe rendeu trinta moedas de prata. Ficou felicíssimo durante o resto da madrugada. Seu sonho estava realizado, então, desistindo da sociedade, fugiu para bem longe. 

No outro dia sua mãe estava saindo de casa quando a vizinha lhe perguntou de forma irônica:

─ Sabe quem se enforcou hoje pela manhã?

─ Não, ─ respondeu Ciboria.

─ Seu filho, Judas Iscariotes.

Uma mulher surgiu para amenizar o sofrimento da outra. Segundo testemunhas, era Maria o nome dela. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.12.2021  ─ 21:25



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