TEMPO ESCRAVOCRATA
Lá está um homem cavando buraco. Aqui de cima o vejo cansando a pá e a picareta sem dar trégua. Com certeza não está fazendo aquilo porque gosta. Naquelas mãos já estouraram muitas bolhas até ser "encaliçado" na mente que o jeito é continuar consumindo-se naquele trabalho. Não vê alternativas. Seu avô fazia, seu pai também, e ele, suado, continua fazendo valer a tradição familiar. Olha o sol para saber se está perto da hora do descanso. Ao lado, tantos outros seguindo a trajetória da formiguinha operária. Sua olimpíada é conseguir entregar a tarefa antes do anoitecer, mas isso não é problema: por enquanto está dentro da expectativa. Até quando poderá contar com aquele emprego? Mesmo estafante, é de carteira assinada, e isso o livra da polícia.
Quando se toca piano, dizemos que o instrumentista tem vocação para a música, entretanto ninguém diz que nasceu com a vocação para cavar buraco. Não sei se o cavador tem necessidade de ouvir piano, mas sei que o pianista precisa do buraco para construir sua casa. Os dois, unidos por um buraco, caminham paralelamente sem se tocarem.
O especialista em buraco é quem mede a produção. Estudou para lidar com a partitura de materiais e serviços. A sinfonia prossegue com sua batuta dizendo onde precisa cavar mais, enterrar mais, nivelar mais.
O cavador obedece sem entender o que o outro lê. Ouviu falar em escola quando precisava levar marmita ao pai. Ficava admirado com as salas sendo rebocadas, com a inauguração discursada pelas autoridades. Achava bonito, mas para que serve mesmo? Não podia entrar de pé no chão. Sandália era artigo de luxo, e só os filhos dos ricos possuíam.
Criou-se na rua jogando bola na frente do cemitério. Naqueles momentos, sem distinção de classes sociais, era ovacionado pelos gols feitos. Só isso. O tempo passou, os outros conseguiram se sentarem nos bancos do grupo escolar, e ele, na rua, levando e trazendo recados. Outrora, menino de recado, hoje, homem de dores na alma: o sofá escorado com tijolos; o filho brincando com um osso tomado do cachorro.
A mulher ainda conseguiu sentar-se na carteira da frente, e é quem lê para ele. As histórias são inventadas enquanto cava buracos. À noite, traz decoradas para serem registradas por ela. Fazem isso depois da louça lavada, mas por pouco tempo: amanhã o sol será de rachar.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Santa Cruz/RN, 06.11.2021 – 14:36
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