SINHAZINHA
Na última vez que encontrei a irmã Sinhazinha, posei para tirar foto com duas pessoas da minha mais alta estima: ela e sua filha Maria José. Lembro de haver colocado com muito carinho a mão no ombro de alguém que, infelizmente, já não me reconhecia, mas a quem eu tanto amava. Cleide do supermercado, a ex-nora com quem manteve laços vitalícios, já havia me advertido quanto a isso, mas eu acalentara um realismo esperançoso, pois anos antes, quando a educadora Suerleide a reencontrou não foi reconhecida, no entanto percebeu que de mim ela ainda lembrava!
Estávamos num momento festivo do ano 2019, no Juvenal Pé de Copa. Era o lançamento de "Bom Dia, Meus Povo!", livro de Rosemilton Silva ao qual tive a honra de prefaciar. Ela, que então tinha 98 anos, era a estrela principal do evento. O Quintino Bocayuva estava em festa e ela, ex-professora amada, citada na obra então lançada, recebia merecida homenagem de ex-alunos, colegas e amigos.
Pena que não estivesse ali plena, lúcida e cheia de vida como sempre fora, para usufruir melhor daquele momento feito para ela.
Durante quase duas décadas havíamos convivido. Tínhamos frequentado a mesma igreja e a casa um do outro. Quantas impressões espirituais trocamos! Quantas vezes ela se assentou para ouvir atenciosamente meus sermões e eu para escutar seus vibrantes testemunhos.
Quando soube que eu havia saído da igreja, ela já não residia em Santa Cruz; muito se entristeceu com a notícia e até me enviou uma carta, repleta de versículos bíblicos e de admoestações.
Não quis teimar com ela; jamais ousei tentar mudar seu pensamento. Gostava de sua pessoa do jeito que ela era. Aliás, lamentei muito hoje não poder reencontrar sua cartinha.
No reencontro que tivemos em 2019, o esquecimento nos manteve distantes, embora próximos, na mesma mesa. Havia também o problema da audição: há muitos anos, por conta de uma bomba junina que explodiram perto dela, já não ouvia tão bem. Amorosa como sempre foi, tentou dar a impressão que havia me reconhecido ou, quem sabe, vieram-lhe à mente lampejos de nosso longo convívio. Como eu gostaria de ter podido, naquela noite, manifestar tudo que ela significava para mim!
Hoje, 20.07.2021, Sinhazinha morreu. Por mais de um século viveu, nem sempre em circunstâncias favoráveis. Ao escrever estas linhas, vem-me à mente muitas das agruras que ela me contou. Notável foi sua resiliência ao longo da existência. Muitos foram os problemas familiares, as tragédias que presenciou ou vivenciou. Um dos problemas de se viver muito é esse: ver os que se vão antes de nós; ter que administrar perdas irreparáveis, como a que ela teve ao enterrar dois filhos.
Nascida em 1920, passou direta e indiretamente por diversas crises políticas e convulsões sociais. Mas veio ao mundo com aquela capacidade rara de se colocar no lugar dos outros, de sofrer e sorrir com os demais e pelos demais. Era, de fato, uma mão amiga. Por isso, ao longo da vida, praticamente não perdeu amigos: acumulou-os. Morreu no Dia Internacional do Amigo.
Não tenho dúvidas de que deve ter sido uma professora excelente, alguém que dava vivacidade às aulas e ia além do ofício. Na igreja, sempre foi uma pessoa maravilhosa. A muitos inspirou por palavras e ações.
Ao falar da morte de Abraão, a Bíblia diz que ele "expirou: morreu numa velhice feliz, idoso e repleto de bons anos, e foi reunido aos seus antepassados."
Maria Fernandes Bezerra da Silva, a quem carinhosamente sempre lembraremos como irmã Sinhazinha, viveu a experiência de Abraão: sua vida foi moldada pela fé. Em sua natural predisposição à alegria e motivada pela esperança, viu cumprir-se em sua vida o versículo que diz "O coração alegre serve de bom remédio." Por 101 anos este continuou a bater por si e pelos outros. Como Abraão, morreu numa velhice ditosa e feliz. Sua filha Maria José e demais familiares de tudo fizeram para que ela finalizasse seus dias da forma mais satisfatória possível.
Resta-nos agora refletir para melhor entender e aceitar algo escrito em Eclesiastes (verso 1), livro que ela tanto amava:
Um bom nome é melhor do que um perfume finíssimo, e o dia da morte é melhor do que o dia do nascimento.
Sinhazinha partiu, mas deixou um bom nome. O dia de sua morte nos traz boas lembranças a seu respeito e ficamos felizes por saber que ela viveu em plenitude. Não mais sofrerá os achaques da velhice; ultrapassou em muito os setenta anos que a Bíblia mostra como limite à maioria dos viventes. Resta-nos o perfume de suas boas ações, de sua atitude sempre acolhedora, generosidade e amizade sincera.
Nosso pêsames a todos que, como eu, intimamente choram por tão grande perda.
Gilberto Cardoso dos Santos
Caro Gilberto, também deixando nossa solidariedade à família perante o falecimento da Senhora Maria Fernandes Bezerra da Silva (Sinhazinha), quero expressar meus aplausos à sua homenagem através do presente texto. Com maestria você nos apresentou a resiliência, a generosidade, a beleza e a essência do perfume humano derramado e deixado por Dona Sinhazinha.
ResponderExcluirMuito grato, querido amigo. De fato ela foi tudo isso e bem mais. Abraços.
ResponderExcluirVc fez um lindo texto!! Histórias de amizade sempre aquecem o coração. A gente vai embarcando na narrativa, vai imaginando e, de repente, começa a simpatizar com uma pessoa só pelo que leu dela.
ResponderExcluirOutra coisa que mexe com a imaginação de gente como eu é deparar-se com alguém que nasce no dia de Natal e morre no Dia do Amigo... Não é, no mínimo, sugestivo? Eu já vou logo começando a gostar da pessoa... ☺️
Que a dona Sinhazinha descanse em paz; que usufrua, na eternidade, de todo o bem que semeou por aqui. 🌾 - Jaci Azevedo
Que linda homenagem. Merecidamente. Parabéns, Gilberto Cardoso Dos Santos. Meus sentimentos aos familiares e amigos de Dona Sinhazinha e que Deus a acolha na morada celestial e dê o conforto necessário aos que ficam. - Joseni Santos
ResponderExcluirQue texto lindo, Gilberto! Emocionante por demais, parabéns! Meus sentimentos. Maria Goretti Borges
ResponderExcluirMuito bom. Parabéns 👏👏 - Ronnaldo De Andrade
ResponderExcluirNossos sentimentos a todos familiares. Linda a homenagem. - Luzenira Nunes
ResponderExcluirBela homenagem, poeta! - Adriano Bezerra
ResponderExcluirParabéns pelo excelente texto sobre Sinhazinha. Fiquei com vontade de conhecer depois do seu texto. - Thiago Gonzaga
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