domingo, 31 de janeiro de 2021

Oi de Pimba

 


Oi de Pimba 

Nailson Costa


            O 'oi' é uma interjeição, do ponto de vista gramatical, uma saudação, que pode significar muito, ou não, dependendo do contexto. Já o 'oi' pronunciado por um nordestino da gema, mesmo este tendo boa formação educacional, é uma gostosa corruptela da palavra 'olho' presente no lindo sotaque do idioma nordestinês.

             Ontem à tardinha, sufocado com o sedentarismo em razão do confinamento social (Covid à vista), subi os 304 degraus da escada do prédio onde moro. Fui à procura de um 'oi' do belo  pôr do sol que se me insinuava naquele dia, apesar dos muitos arranha-céus.

            Acho bom ouvir a voz da natureza pra pensar melhor os conselhos da vida. Eu carecia de um 'oi', nem que fosse do vento, do sol ou da lua. Eu precisava que meu 'oi' voltasse a enxergar as fantasias esquizofrênicas de minha infância. É que Toda criança tem um grau de esquizofrenia lúdica e linda, sem necessariamente ser doente. O mundo da criança é assim, repleto de heróis a interagir com ela mesma em seu enredo.

            Rejeitei o elevador. Queria sentir o prazer de chegar ao teto do prédio, cansado, esbaforido. Eu queria ter a certeza de que ainda existia.

            Volto à calma. O silêncio da terra  e o barulho do alto  me levaram a pensar, sem antes nunca ter pensado, no porquê de Bilo e Dr. Costa, nas poucas vezes que se dirigiram a mim, uma criança de 7 anos de idade, era com um " Sai da frente, oi de pimba".

            "Oi de pimba"! Que estranha essa denominação! Ainda hoje tenho os olhos apertadinhos na minha grande cara redonda. Seria esse o motivo? Seria o meu jeito estranho lúdico-esquizofrênico de cumprimentar, de dialogar, com o meu mundo cheio de personagens? Eu vivia, sim, a falar um 'oi' alto pra eles!

             Não, caro leitor, não acredito em que você pense numa imagem de maldade a que possa esse apelido fantasiar. Bilo, Dr. Costa, Geraldo, Ontõin, Piaca, Chico, todos da mais pura gema dos Costa do Trairi, primos 'carná' de Pioso, meu pai, eram pessoas simples, honestas, de caracteres irretocáveis, excelentes comerciantes do algodão mocó,  riqueza maior do Região Semi-Árida do Nordeste Brasileiro, até o mau-olhado da praga do Bicudo, nos fins da década de 1970, fazerem vítimas de quebranto as nossas alvas plantações. Os Costa eram uma família destituída de maldades.

            Eles, os Costa,  como escrevi no conto 'Os Kuestas',  adoravam botar apelidos estranhos nos amigos. Era a sua melhor forma de demonstração de carinho e amizade. Seus melhores pitacos e palpites, entretanto, se davam no 'fitibó' jogado pelo Real Madrid, o de São Bento do Trairi. O 'fitibó' de "lá in nói", nas terras de Afonso Costa, também era resenhado nas tradicionais reuniões de suas calçadas à noite. As fofocas, as mentiras, as risadas, as pabulagens heroicas eram ditas no mais alto tom de suas cordas vocais, e estas, as estridentes cordas vocais dos Costa, se estiravam felizes naqueles encontros noturnos diários. Os Costa eram bons conhecedores das aflições da alma humana. Eram precisos e transparentes nas suas aparições públicas, sem a necessidade da aspereza dos diplomas de  papel e da sutileza abstrata dos conhecimentos livrescos.

             Ali, todos eram valentes! Nenhum frouxo, apesar de o serem de dar agonia! Amaral Costa era exceção. Queria provar a toda hora a sua valentia. E provou, ao entrar na jaula do leão - com o domador, claro -, para sair em seguida, às pressas, todo cagado, no primeiro rosnado da fera perigosa, sob os  "ohhhh" apreensíveis, os aplausos trêmulos e as risadas de ufa do respeitável público do circo ... que não era o Circo Mágico Nelson, pois este não tinha leões, elefantes, globo da morte como atração.

            - Ah, os Costa do Trairi!

             Por que pensei neles no silêncio das alturas de meu prédio? É fato que eles falavam muito alto! Irritante até! Ninguém nada ouvia além de barulho. Nem eles mesmos  se ouviam quando juntos estavam. Houve até quem dissesse que o primeiro Costa a chegar às terras tupiniquins, foi o Capitão da embarcação da Nau de Cabral, aquele que gritou "Terra à vista", e todos ouviram bem e se abraçaram felizes! É possível, também, que Graham Bell tenha se inspirado nas cordas vocais dos Costa para inventar o telefone, o oi, a fala à distância de muitos milhares de metros.

            - Ah, os Costa do Trairi!

            Eu adorava os seus apelidos! Todos eles são eu mesmo, pelo menos no conto 'Os Kuestas'. Todos eles eram meus heróis, meus heterônimos famosos, mesmo sendo Rapapernum Kuesta, meu pai, o único herói de minhas histórias.  

            Não sei por que eu, lá do alto do prédio onde moro, pensei tanto nos Costa do tempo de minha infância. Não sei por que  me lembrei do Capitão da Nau de Cabral, possível primeiro Costa a chegar por aqui. Não sei por que eu ouvi, naquela tarde de meu pôr do sol, a discussão feroz, vinda do céu, entre Bilo, Doutor e demais Costa com Graham Bell, por causa dos termos dos direitos autorais da invenção do telefone e de uma possível indenização.

            Não sei por que acho que vi todos eles, desenhados por entre as nuvens a ofuscar minha visão do fim de meu dia.

Enfim, não sei por que todos silenciaram a sua discussão, entreolharam-se espantados,  apontaram  seus dedos pra mim  e disseram surpresos:

            - Olha só que tá ali embaixo orando pra nós! Oi de Pimba!

            Àquela altura, naquele pôr do sol ímpar, um "oi", sendo ele uma interjeição, uma saudação carinhosa ou não, era massa! Naquela altura, mesmo sendo sendo um 'oi' a corruptela do 'olho' dos céus, tive a certeza de que vinha do mundo fantástico dos Costa. E foi o suficiente para eu enxergar,  com os olhos de minha saudade, todas as lembranças mágicas de meu passado!

            - Oi! Que bom voltar a falar, sozinho, com vocês,  hoje personagens inesquecíveis de meu mundo lúdico! Que ótimo esta tarde vê-los, aí no alto, do alto do prédio onde moro! Que massa eu os cumprimentar com o meu 'oi', mesmo este sendo de pimba, este cujas lentes estão hoje cansadas e embaçadas de tanto tempo!

(Nailson Costa, em Conto Crônicas em Dó Maior, p. 30, janeiro, 2021)




Um comentário:

  1. Boa crônica Nailson. Ficou fácil para mim reconhecer tais trejeitos nos personagens, tendo em vista que sou casado com uma descendente desta linhagem que só falam gritando. Parabéns...

    ResponderExcluir

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”