sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

ESCRITOR MERCENÁRIO - Heraldo Lins

 


ESCRITOR MERCENÁRIO 


Minha esperança é pegar um assunto. Eles surgem do nada. Nessa hora tenho que estar preparado para capturá-lo e colocá-lo nesta vitrine. Hoje está difícil. Já faz algum tempo que estou de tocaia observando a poça d’água. Na bebida fica mais fácil surpreendê-lo.  Às vezes aparece um boato. Eu os deixo passar. Boato é bicho fácil de aparecer. Eu os conheço muito bem. Já peguei vários deles mortos pela própria mídia. O nascedouro e o abatedouro é lá. Enquanto um assunto não vem fico limpando a arma. A munição de pegar assunto é de prata. Tenho apenas uma. Não posso errar. O tempo vai passando, e vem uma notícia. Notícia tem pouca credibilidade. Às vezes é criada e publicada para que se acredite nela sem questionar. Esta também é perigosa. Prima legítima do boato. Tem um que está difícil de surgir tanto quanto o assunto: é o furo de reportagem. Este está ameaçado de extinção. Com a popularização dos vídeos, o furo perdeu muito do seu buraco, e furo sem buraco não é furo. Está desmoralizado perdendo lugar para os fakes. Percebo daqui muitos fakes neste momento tomando água. Observo-os, porém não me interessa. Têm sua validade estimada em três horas. Lá vem um assunto. Psiu! Silêncio! Está chegando. Vem com cara de coronavírus. Deixe ver se vale a pena. Hum! Não, esse está batido demais. Por mais que se acrescente algo ao já falado ninguém vai mais prestar atenção. Acho que vou deixar passar. Está muito banalizado pelos vídeos mostrados à exaustão. São tantas versões de um mesmo fato que fica difícil enveredar por uma linha que dê credibilidade. Lá vem um outro assunto aparecendo. Esse é de morte. Acredito que dá certo. Pronto! Cravei a bala no coração do assunto. Estou tirando o couro do assunto e vejo em suas entranhas que se trata de um recente enterrado. Ele, a semana passada, começou a falar em voz alta que não queria ir. Que soltassem o braço dele. A vizinha foi lá e ele disse que havia uma mulher do além puxando-o.  Acredito que quando eu acrescentar o choro das netas e colocar o coveiro bêbado caindo por cima do caixão, ficará fácil prender a atenção sobre a morte do meu tio João.  



Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Santa Cruz/RN, 10/01/2021 – 22:05

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