sexta-feira, 27 de novembro de 2020

VARIAÇÕES CULTURAIS - Heraldo Lins

 


VARIAÇÕES CULTURAIS

 

 

Morre e a família deixa os urubus comerem. Parece estarrecedor, mas é assim em algumas regiões do planeta. É o que eles chamam de morte celestial. Acreditam que o corpo sem o espírito é apenas uma casca. O morto precisa ser digerido pelos abutres para alcançar a paz espiritual. Há em frente à capela um local onde eles esquartejam o corpo do ente querido para ficar mais fácil as aves engolirem. Não há como não fazer assim. Milênios de anos seguindo a tradição. A temperatura é também um dos responsáveis por essa cultura. O termômetro marcando abaixo de zero contribui para que os corpos não apodreçam. Sem a degeneração, a única forma de desaparecer com o corpo é deixar os bichos comerem. Se não forem devorados, vão ter que ser enterrados e assim dificultaria o plantio. Ficaria deselegante o agricultor ir plantar milho e dar de cara com a cara do avô dura no chão. Desculpe-me vovô, mas aqui no seu nariz cabe um pé de feijão; na boca, um de melancia; no ouvido uma bananeira ficaria bem. E assim continuaria plantando sem remorso até chegar sua vez de ser plantado. Quando precisasse consertar o tamborete, a mãe diria: menino, vá ali e pegue a perna do seu avô! Acho que dá certo trocar por essa que está quebrada. Traga sem brincadeira e não mexa nos testículos. Quando for jogar biloca use só as bolinhas de vidro. A mãe sabedora da serventia da casca do falecido, deixaria guardada no quartinho de ferramentas para utilizá-lo em outros consertos. Os olhos poderiam servir de maçaneta. A cabeça como bola de boliche e os cabelos como esponja de lavar louça.

Lá onde se engorda urubu com defuntos, os vermes não podem trabalhar. Morrem congelados. Enquanto está quente, eles vivem procriando. Quando o defunto esfria, eles esfriam juntos. Mas há os defuntos que não conseguem chamar a atenção dos pássaros. A família do morto é vista como tendo um parente no inferno. Eles acreditam que a pessoa se salva porque os urubus comem e ficam voando bem alto com o familiar no estômago. Mas quando não há interesse por parte dos abutres em devorar o falecido, a família faz de tudo para chamar a atenção, inclusive, temperam o falecido com cebola, coentro e alho. Há cursos de como temperar defunto. Os programas televisivos promovem concursos mensais patrocinando os interessados. A criatividade fica por conta de cada chef. Eles apelam para todos os gostos: defunto ao molho de camarão; defunto acebolado com folhinhas de hortelã; defunto com cobertura de orégano e pitadas de canela. Quem quiser participar desses concursos estão abertas as inscrições. Investir hoje no curso cozinheiro de gente é a melhor opção. Possa ser que aqui no Brasil o Covid-19 nos force a decepar nossos mortos. Se for o caminho a ser trilhado, pelo menos estaremos capacitados para essas novas demandas.

 

 

 

Autor: Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26/11/2020

 

Heraldo Lins é arte-educador

Tel.:  84-99973-4114

Email: showdemamulengos@gmail.com

 

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