VARIAÇÕES
CULTURAIS
Morre e a família deixa os urubus comerem. Parece
estarrecedor, mas é assim em algumas regiões do planeta. É o que eles chamam de
morte celestial. Acreditam que o corpo sem o espírito é apenas uma casca. O
morto precisa ser digerido pelos abutres para alcançar a paz espiritual. Há em
frente à capela um local onde eles esquartejam o corpo do ente querido para ficar
mais fácil as aves engolirem. Não há como não fazer assim. Milênios de anos
seguindo a tradição. A temperatura é também um dos responsáveis por essa
cultura. O termômetro marcando abaixo de zero contribui para que os corpos não
apodreçam. Sem a degeneração, a única forma de desaparecer com o corpo é deixar
os bichos comerem. Se não forem devorados, vão ter que ser enterrados e assim
dificultaria o plantio. Ficaria deselegante o agricultor ir plantar milho e dar
de cara com a cara do avô dura no chão. Desculpe-me vovô, mas aqui no seu nariz
cabe um pé de feijão; na boca, um de melancia; no ouvido uma bananeira ficaria
bem. E assim continuaria plantando sem remorso até chegar sua vez de ser
plantado. Quando precisasse consertar o tamborete, a mãe diria: menino, vá ali
e pegue a perna do seu avô! Acho que dá certo trocar por essa que está quebrada.
Traga sem brincadeira e não mexa nos testículos. Quando for jogar biloca use só
as bolinhas de vidro. A mãe sabedora da serventia da casca do falecido,
deixaria guardada no quartinho de ferramentas para utilizá-lo em outros consertos.
Os olhos poderiam servir de maçaneta. A cabeça como bola de boliche e os
cabelos como esponja de lavar louça.
Lá onde se engorda urubu com defuntos, os vermes não
podem trabalhar. Morrem congelados. Enquanto está quente, eles vivem
procriando. Quando o defunto esfria, eles esfriam juntos. Mas há os defuntos que
não conseguem chamar a atenção dos pássaros. A família do morto é vista como tendo
um parente no inferno. Eles acreditam que a pessoa se salva porque os urubus
comem e ficam voando bem alto com o familiar no estômago. Mas quando não há
interesse por parte dos abutres em devorar o falecido, a família faz de tudo
para chamar a atenção, inclusive, temperam o falecido com cebola, coentro e alho.
Há cursos de como temperar defunto. Os programas televisivos promovem concursos
mensais patrocinando os interessados. A criatividade fica por conta de cada
chef. Eles apelam para todos os gostos: defunto ao molho de camarão; defunto
acebolado com folhinhas de hortelã; defunto com cobertura de orégano e pitadas
de canela. Quem quiser participar desses concursos estão abertas as inscrições.
Investir hoje no curso cozinheiro de gente é a melhor opção. Possa ser que aqui
no Brasil o Covid-19 nos force a decepar nossos mortos. Se for o caminho a ser
trilhado, pelo menos estaremos capacitados para essas novas demandas.
Autor: Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 26/11/2020
Heraldo Lins é arte-educador
Tel.: 84-99973-4114
Email: showdemamulengos@gmail.com
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