SOTAQUES E NORDESTINICES
De vez em quando me pego pensando: esse papo de ser subdesenvolvido enche
o saco.
- Por que nasci no Brasil?! Desculpa, Deus! Brasil é bacana. Mas, por que
não Rio Grande do Sul, São Paulo ou Rio de Janeiro; Estados importantes na
geografia econômica do país?
Por que fui dar o ar da minha graça na Serrinha da Formiga, lá nas
brenhas do Rio Grande do Norte?
Por que sou uma representante da fome e da seca?
Por que trago na fala a marca registrada de uma gente que sofre? Na
verdade não sinto as coisas bem assim, mas essa é a marca.
O nordestino está para o Brasil mais ou menos como o turco e o marroquino estão para a Europa. Deu pra entender?
Lembro que quando fui trabalhar como atriz de televisão, em Natal, tive
que frequentar um curso para aprender o sotaque padrão dos meios de comunicação
do país, que não era o do norte/nordeste e sim do sul/sudeste.
A coisa era tão forçada que a gente saía fechando a pronúncia das
palavras indiscriminadamente e falando como se tivesse com um ovo na boca, pra
disfarçar o cantado da fala e corrigir a acentuação aberta, tão peculiar ao
sotaque nordestino.
Não posso esquecer uma amiga de labuta apresentando o telejornal:
- A escôla Têcnica Fêdêral dô Riô Grandê dô Nôrtê cônvida pais ê mêstrês
para a côlação dê grau da turma dê mil nôvêcêntos ê sêtênta ê sête. Sacou?
Foi difícil pra gente entender.
Fui morar no Rio de Janeiro, sonho de quase todo artista do
norte/nordeste brasileiro. Antes, porém, frequentei uma escola especializada
para aprender a falar "carioquês". Assim cheguei à Cidade Maravilhosa
cheia dos" tchos e dchos "
característicos do sotaque do Rio de Janeiro. Chiava mais que uma panela
de pressão.
- Faz muitcho tempo!
- Quero oitcho biscoitchos!
- Que peidcho fedorentcho!
Felizmente corrigi a pequena falha em alguns cursos de dicção e colocação
de voz. Mesmo assim, ouvia frequentemente:
- Você tem um sotaque engraçado! É Paraíba?
Engraçado o cacete! A pergunta era tendenciosa.
- Preciso melhorar esse meu jeito caipira de falar!
A coisa já estava virando um complexo. Passei a me policiar.
Falar inglês? Nem pensar!
- É ridículo nordestino falando inglês!
Comecei a perceber que a paranoia não era só minha. Conheci uma paraibana
recém chegada ao Rio de Janeiro. Quando fui anotar o seu telefone perguntei:
- Escuta teu nome é Ieda com I ou com Y?
- Com Y, por favor. Com I era quando eu morava no diabo daquela Paraíba!
O nordeste brinda o Brasil com tanta coisa legal. Quantos artistas e
intelectuais nasceram lá.
Viva os baianos, cearenses, potiguares e paraibanos. Jorge Amado nos deixou um enorme legado. Que maravilha! Mas, parece que não tem jeito. Da Bahia pra cima é "paraíba" pejorativamente falando.
Sei de uma cantora paraibana que sofreu na carne o estigma do sotaque, na
época em que trabalhava como atriz. Relaxou somente quando optou pela carreira
de cantora e começou a virar mania nacional. Mesmo assim, ganhou vários
apelidos maldosos tipo:
"Madonna da Caatinga", "Taquara do Agreste" e outros
tantos que não vou perder meu tempo citando. Quando ficou grávida, providenciou
para que tudo saísse conforme o figurino e lógico que o rebento deveria nascer
na Cidade Maravilhosa, afinal de contas quem nasce no Rio já vem abençoado pelo
redentor.
A moça estava no oitavo mês de gravidez e continuava trabalhando pois se
sentia muito bem. Um dia, ela se encontrava na cidade de Campina Grande na
Paraíba. Cantava, pulava e saracoteava no palco quando sentiu uma dorzinha no
baixo ventre. Teve que abandonar o show às pressas senão o danado do moleque
nascia era ali mesmo.
Nasceu saudável que nem um touro e paraibano que nem a mãe.
A história mais curiosa tomei conhecimento em minha última visita a Natal. Soube de um novo diretor de teatro que estava arrasando nas principais cidades do nordeste. Um espanhol. Assisti a um dos seus espetáculos. Era sobre Lampião e o cangaço. Muito bom. O cara entendeu o espírito da coisa. Saí dali curiosa e até me sentindo um pouco roubada. Como podia um estrangeiro ter captado tão bem as artimanhas do rei do cangaço? Nos bares da vida descobri que não era bem assim. O rapaz tinha nascido em Juazeiro, sertão do Ceará. Terra de padre Cícero, padrinho de todos nós e santo protetor de Lampião. Saiu do Brasil aos 18 anos. Na Espanha se instalou, completou os estudos e casou com uma nativa ganhando assim os direitos de cidadão. 20 anos depois voltou às origens, só que, agora, como espanhol. Pode?
Quando estava pra sair do Brasil, fiquei tentada a mudar a escrita do meu nome. Pensei: "vou logo é virar internacional!". Falei com o meu pai de santo, fui a uma cartomante, joguei os búzios, consultei a numerologia, fiz o mapa astral, o escambau! A galera toda dizia: "muda que vai dar o maior pé". Na hora de assinar o nome era muito estranho. Não vinha do útero.
Andando pelo mundo a gente assimila outros jeitos, outras culturas, mas, vou logo dizendo: falo inglês e holandês nordestinamente. Quem quiser pode chamar de nordestinglês ou holandestino. Acabou esse negócio de adaptar pra ser aceito. Quando pari na Holanda, foi às mulheres cangaceiras que pedi proteção. Maria Bonita foi minha parteira.
Um dia o sul do Brasil vai acordar e dizer: obrigado, nordestinos, por todos esses prédios erguidos, pela paciência de, feito tatus, construírem nossos metrôs, por cuidarem de nossas crianças enquanto as verdadeiras mães trabalham fora de casa. Obrigado pela arte e pelos artistas que nos emocionam a cada dia. Obrigado, enfim, por ser um povo tão generoso!
Vou começar a reverter a situação lançando o slogan: "O sul vai
melhorar com o jeito nordestino de falar". E, só de sacanagem, vou me
comunicar com os órgãos oficiais da minha cidade e avisar que em Joanesburgo
vive uma holandesa muito afinada com a cultura brasileira, especializada em
nordestinês, que está estudando português com afinco e nos próximos anos irá se
instalar em Natal e revolucionar o teatro e a cultura da terrinha. Ela se chama
Fransje van der Mierenhoop, para os que não entendem holandês, Francisquinha da
Serra da Formiga.
.....................................Kinha Costa ................................................................
KINHA COSTA
Atriz premiada, cronista, arte-educadora, repórter, reside
na África do Sul.
Livros publicados: “Copa do Mundo – de Riachuelo a
Johanesburgo”, “África do Sul: Um olhar brasileiro”, “Impressões de uma Matuta:
Aventuras de uma brasileira nos países baixos” e “Duas corujas e um gato”
(infantil).
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