REFLEXÕES DE UM PRÉ-FINADO
Hoje amanheci sentindo necessidade de refletir sobre a morte, mas de modo vago e sem muito compromisso com conclusões pois, como disse Fernando Pessoa, "a única conclusão é morrer". Resolvi rever o que o Eclesiastes diz a respeito da indesejada. Logo no capítulo 1 (verso 11), encontrei o seguinte:
"Ninguém se lembra dos seus antepassados. E também aqueles que lhes sucedem não serão lembrados por seus pósteros."
Coloquei à prova a afirmação e não consegui ir além de minha avó materna, a quem não conheci, que tocou fogo em si mesma antes que eu viesse ao mundo. Minha mãe, por sua vez, morreu antes que eu completasse os quatro anos; não teve tempo de repassar-me o pouco que devia saber. Sou filho bastardo. Venho de famílias pobres, destroçadas e fadadas ao anonimato.
O que as pessoas sabem sobre seus antepassados, quando o sabem, é em geral bastante vago e dependerá da importância social que estes tiveram. Os mórmons, por seu interesse em batizar-se pelos que já se foram, tentam inverter essa realidade, mas se fizéssemos uma consulta ampla, veríamos que este versículo representa a realidade de 99 por cento da humanidade. Um amigo escritor disse-me que, não crendo em uma outra vida, esperava imortalizar-se através de seus livros. De fato, deixar uma obra escrita - desde que significativa - é um dos poucos meios de que dispomos para que nosso nome permaneça na posteridade. Confesso-lhes que isso para mim não faz muito sentido, pois estarei morto de qualquer jeito. Se num céu ou num inferno, ter meu nome divulgado em futuras gerações parece-me bem pouco relevante. E se completamente morto, de nada me adiantará.
O fato é que seremos esquecidos e talvez só ocasionalmente lembrados, em dias como o de hoje. Eclesiastes 2:16 nos diz em linguagem atualizada:
"Ninguém lembra para sempre dos sábios, como ninguém lembra dos tolos. No futuro todos nós seremos esquecidos. Todos morreremos, tanto os sábios como os tolos."
O livro de Eclesiastes, dizem alguns, foi escrito por alguém que estava com depressão. Não duvido disso. Parece ter sido escrito por alguém que viveu na abundância e descobriu por experiência própria que o prazer não nos garante a felicidade. A visão pessimista dele ecoa nos versos de Ruben Dario, que disse em "LO FATAL":
"Feliz é a árvore que é apenas árvore.
E também a pedra porque ela não tem vida,
Pois não existe dor maior do que estar vivo,
Nem maior desespero do que a vida consciente.
Ser e não ter rumo certo.
E o medo de ter sido e um futuro pavor,
E a certeza espantosa de amanhã estar morto
E sofrer pela vida, pela morte,
Pelo que não sabemos e apenas suspeitamos.
E não saber aonde vamos
Nem de onde viemos...!"
Sempre que medito na mensagem do Eclesiastes e nestes versos, recordo-me do clássico filme "Sociedade dos poetas mortos". Em sua primeira aula de Literatura, o polêmico professor Keating (Robbin Williams) pede que um dos alunos leia a primeira estrofe do poema intitulado PARA AS VIRGENS, QUE APROVEITEM O TEMPO:
Depois, explica que o termo latino equivalente a este sentimento é CARPE DIEM, "aproveite o dia", e pergunta que motivo teria levado o autor (Robert Herrick, 1591 - 1674) a escrever aqueles versos. E por fim explica:
"Porque somos pasto para os vermes, rapazes. Acreditem ou não, todos nesta sala um dia vamos deixar de respirar, vamos ficar frios e morrer."
Em seguida, leva-os para um painel de fotografias das turmas antigas e, enquanto lhes direciona o olhar para certos detalhes, diz:
"Não são muito diferentes de vocês, não é? O mesmo corte de cabelo. Cheios de hormônios, como vocês. Invencíveis, como vocês se sentem. O mundo é a ostra deles. Acreditam estar destinados para grandes coisas, como muitos de vocês. Os olhos deles estão cheios de esperanças, como o de vocês. Eles esperaram até ser tarde demais para mostrarem do que eram capazes? Mas se vocês se aproximarem melhor, nos ouvirão sussurrar o legado deles. Aproximem-se. Escutem. Ouvem? Carpe. Carpe diem. Aproveitem o dia, rapazes. Tornem a vida de vocês extraordinárias."
Vejo grande semelhança entre este filme e a mensagem de Eclesiastes, ao qual o teólogo e pastor René Kivitz chama de "O Livro Mais mal-Humorado da Bíblia".
O objetivo, porém, deste filme e do livro de Salomão não é nos deixar em um baixo astral profundo, mas nos dar motivos para sermos felizes dentro das reais possibilidades que a vida nos oferece. O filme e o livro bíblico querem nos alertar contra o perigo de vivermos mecanicamente, mais preocupados com o TER que com o SER. O "Carpe diem", no Eclesiastes aparece em alguns trechos como, por exemplo, no cap 8:5:
"Portanto aconselho que se desfrute o melhor que a vida pode proporcionar, porquanto debaixo do sol não existe nada mais feliz para o ser humano do que simplesmente: comer, beber e alegrar-se. Essa é a felicidade que nos ajudará a superar os difíceis dias de trabalho durante todo o tempo de vida que Deus nos conceder debaixo do sol!"
Carpe diem (aproveite o dia) não significa trabalhar em excesso, entregar-se ao estresse e sim, usufruir das alegrias disponíveis. Não significa, também, que devamos cair no extremo apontado por Paulo, já presente em sua geração: "Comamos e bebamos que amanhã morreremos.". O eu lírico do Eclesiastes nos diz:
"Então resolvi me divertir e gozar os prazeres da vida. Mas descobri que isso também é ilusão." (Ec. 2:1)
A busca do prazer, ao ultrapassar certos limites, torna-se uma fonte de infelicidade. O Carpe diem, para alguns, infelizmente, se transformou num suicídio a prestações.
Sempre que penso neste filme temo pela possibilidade de efeitos nocivos. Nem todos o entendem adequadamente. Penso no fim trágico de um dos personagens e me pergunto até que ponto essa nova percepção da vida - meio míope, segundo entendo, no caso dele - não foi também responsável por seu suicídio.
O próprio ator que protagonizou tão bem o filme provocou seu próprio fim e a gente se pergunta o quanto da trama que o imortalizou teve influência em sua morte. Talvez nenhuma, claro.
À semelhança do Eclesiastes, atribuído ao rei Salomão, há um poema que dizem ser da autoria de Walt Whitman, que muitos julgam erroneamente ser o poeta referido no filme Sociedade dos Poetas Mortos. intitulado Carpe Diem e provavelmente apócrifo, o poema diz:
O poema difere em muito do estilo do irreverente poeta, tem uma forte pitada de autoajuda e sucesso garantido entre os internautas. Não deixa de ser interessante por isso.
Enquanto divagava sobre estas coisas, coloquei Epitáfio, dos Titãs, no loop:
[...]
Sempre que ouço essa música, emociono-me. Lembro das vezes que a cantei com meus alunos. Era meu modo de dizer-lhes "carpe diem". Fico a pensar em quantos viveram ou têm vivido inadequadamente suas vidas, mas me pergunto: Vale a pena sofrer pelo que não tem mais jeito? Haverá, porventura, alguém na face da Terra que tenha existido de modo perfeito? Como seria uma existência realmente ideal? Não encontro respostas, exceto dogmáticas.
Hoje acordei tarde; teria indevidamente desperdiçado a manhã? Me senti tão bem acordando tarde... após o café, deu-me o desejo de escrever estas coisas, uma crônica, talvez. O dia é propício para que pensemos em nossos queridos que deixaram de existir. Quantas mortes surpreendentes, inesperadíssimas, durante esta pandemia!
Concluo este texto em guerra contra a tristeza. Preguiçosamente, ponho um ponto final em minhas ilações, faltando um minuto para o meio-dia. O dia é propício para que bem o aproveitemos, mas como fazê-lo exatamente hoje, com tantas lembranças tristes?
Gilberto Cardoso dos Santos
Santa Cruz, 02.11.2020.
facebook.com/gcarsantos email: gcarsantos@gmail.com
Grande Gilberto! Pelas palavras foi capaz de transmitir "coisas" ainda não totalmente compreendidas, mas presentes na vida das pessoas.
ResponderExcluirReflexões de um escritor que nos faz pensar na realidade cruel, ou não, de nossa vida!!!
Gilberto, que alegria está dividindo a minha passagem neste mundo com você. Quanta coisa que você escreveu que foi ao meu encontro...lembro do filme citado por você e o quanto ele me emocionou e até me entristeceu. Eu o assisti umas 2 vezes por gostar e outras tantas em ocasiões de estudos. Neste momento urge algo além do carpie dien. Acredito que é preciso aproveitar o átomo do momento de forma que a manhã , a tarde e a noite sejam o agora. É verdade o bilhete que todos lemos no dia da natividade: somos instantes! Seu texto merece ser lido e relido... parabéns!
ResponderExcluirParabéns, Gilberto, pela lição de vida no que se convenciona "Dia de Finados".
ResponderExcluirVocê nos traz seu penoso depoimento, mas que também ao mesmo tempo é um exemplar de superação das agruras desta vida.
O que se finou chegou ao fim?
O que se plantou e semeou é o que ficou?
"Tudo são vaidades"?
"Céus e terras passarão".
"A cada dia o seu cuidado".
"É preciso saber viver".
É preciso aprender a viver.
"Carpe diem"!
(Roberto Flávio).
Texto maravhoso, poético, verdadeiro, mentiroso (rsrsrs) como são os poetas. Vou compartilhar no meu blog. Parabéns amigo e vamos viver, enquanto não escrevemos as nossas memórias póstumas.
ResponderExcluirExcelente texto. Muito lúcido. Penso que estamos nessa vida para ajudar um ao outro a passar o caminho com menos dor e mais fé.
ResponderExcluirMuito bom! Bem escrito! Reflexivo. Até parodiei os Titãs, ao final da leitura, indagando-me: eu deveria ter chorado mais? Chorei, sim, não sei se muito, não sei se pouco, mas dentro dos limites desta que sou e que tanto queria aproveitar a vida, enquanto ela, a vida fugidia, brinca com a gente de esconde-esconde.
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