quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

TUDO O QUE É SÃO PODE FICAR DOENTE: A PSEUDO TRANSCENDÊNCIA - Leonardo Boff


TUDO O QUE É SÃO PODE FICAR DOENTE:
A PSEUDO TRANSCENDÊNCIA

Há também uma pseudo transcendência que a cultura atual promove de forma inflacionada. Acho que todo esse universo do marketing, do showbizz, do entretenimento nacional e mundial são os campos onde se produz uma experiência de pseudo transcendência. As menininhas ficam loucas quando vêem um artista de televisão e podem tocá-lo. Deliram quando encontram a Xuxa, porque a Xuxa é uma fonte de transcendência construída artificialmente. Quando o padre Marcelo Rossi canta, muitos cristãos deliram. É como se baixasse o Espírito Santo neles por força da evocação de emoções. Julgo tais manifestações de pseudo transcendência.

E a maior de todas elas é a droga. Ela permite uma viagem fantástica, feita não pela espiritualidade, mas pela química. A religião, a arte, o cinema podem ser drogas. Com elas rompem-se todos os limites, vive-se a onipotência e se voa para além dos limites da condição humana cotidiana. O problema da droga não é a viagem, é a volta da viagem, quando então não se suporta mais o cotidiano. O cotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, a obrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, de pagar contas, tudo isso é estafante e enervante. Então, é muito melhor viajar, saltar para fora dessas limitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade e a vida.

Julgo que o critério para saber se a transcendência é boa, se potencia o ser humano ou o diminui, está na resposta que damos a essa pergunta: em que medida tal experiência ajuda a enriquecer e a assumir o cotidiano? Ela representa uma fuga ou um álibi para o cotidiano, um endeusamento e uma fetichização daquilo que representa sentido para nós? Se a experiência não amplia nossa liberdade, não nos dá mais energia para enfrentar os desafios do cotidiano, comum a todos os mortais, não nos faz mais compassivos, generosos e solidários, podemos seguramente dizer: fizemos uma experiência de pseudo transcendência. Saímos mais empobrecidos em nossa realidade essencial, que é a de existências que se constroem com decisões de liberdade, assumindo honestamente os desafios e estando à altura deles. Precisamos compreender e assimilar em nossas atitudes que não é só poeticamente que habitamos o mundo, quer dizer, com enlevo, transfiguração e alegria, mas também habitamos o mundo prosaicamente, vale dizer, com sua opacidade, com seus limites e seu enraizamento inevitável. Dessa situação objetiva nenhuma droga nos liberta, só uma existência que saiba equilibrar transcendência e imanência como dimensões de toda existência humana.

Então, as pseudo transcendências exploram essa capacidade de ultrapassagem do ser humano, mas não lhe conferem a experiência de uma plenitude duradoura. Não é a droga que permite a experiência da viagem, é a química presente nela. É diferente a viagem feita a partir de um trabalho de busca de sua identidade e de um caminho espiritual mais árduo. Um trabalho onde domesticamos passo a passo os demônios que nos habitam, sem recalcá-los, sem cortar-lhes os chifres, mas controlando-os e canalizando a energia poderosa deles para o nosso crescimento. Porque eles ensejam uma experiência mais global da realidade, permitindo que a luz ilumine as trevas e que a nossa parte sã cure a parte doentia. Essa é a experiência de transcendência fecunda, verdadeiramente humana.

Do livro TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”