domingo, 17 de novembro de 2019

POR FAVOR, GEORGE SAND, NÃO MORRA!




POR FAVOR, GEORGE SAND, NÃO MORRA!
Liliane Mendonça – novembro/2019

Estou lendo um livro[1] no qual o escritor francês Gustave Flaubert fala de sua amizade com a também escritora francesa George Sand, sua “cara mestre”, como ele a chamava.
O livro está chegando ao final e, de repente, me dou conta que ela, Sand, já vai morrer. Flaubert vai narrando progressivamente os anos de convívio entre eles, afirma que ela foi sua melhor amiga, e sobre ela faz esse tipo de declaração “Como a Suíça, George Sand domina seus vizinhos, ela sabe como olhar para eles, os contemplar[2] ” e ela, por carta, disse a ele uma vez “você é tão bom que não pode fazer o mal”. A narrativa, perto do final, traz ambos mais velhos, mais cansados, por vezes, um pouco tristes. Cada um na sua cidade, na sua casa, no seu mundo particular. Quando ele diz no livro que ela só tem mais um ano e meio de vida, me dá um nó na garganta. Eu paro de ler, fecho e abraço o livro, literalmente, com a sensação tola de que se eu não ler, ela não vai morrer... como se isso fosse possível, como se o tempo já não tivesse passado o suficiente, não apenas para a morte levá-la, mas também ao célebre narrador, que sobreviveu a ela por quatro anos.
Imediatamente lembro-me de Rodrigo, o narrador de A Hora da Estrela, quando diz
Macabéa me matou. Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos assusteis, morrer é um instante, passa logo, eu sei porque acabo de morrer com a moça. Desculpai-me essa morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita tudo porque já beijou a parede. Mas eis que de repente sinto o meu último esgar de revolta e uivo: o morticínio dos pombos!!! Viver é luxo. Pronto, passou. (Clarice Lispector, A Hora da Estrela, 1977)

E de repente essa é a mesma, e também outra história...
Apesar de terem passado por momentos financeiros difíceis, Sand e Flaubert conseguiram viver de literatura. Tiveram outros recursos associados, mas não pararam nunca de escrever. Os escritores viveram no século XIX, e desenvolveram uma grande amizade a partir de 1863, após o lançamento do romance histórico Salammbô[3], de Flaubert, que foi reprovado pela crítica especializada da época, mas agradou muito a George Sand que escreveu um artigo para o jornal La Presse[4] elogiando o livro. Flaubert admitiu que ela lhe fazia falta de uma maneira insuportável depois da morte. Chegou a afirmar que achava que sofria sua perda tanto quanto o filho dela. A amizade entre eles durou até o fim da vida.

Está bem, chega de fugir do assunto.
Agora, volta em mim a imagem de Macabéa, a protagonista de A Hora da Estrela, ela está rodopiando com seu vestido novo e sorrindo. Depois vem Flaubert “Esse é o caráter de George Sand: a bondade, toda a bondade, nada além da bondade.[5]
Pego novamente o livro, o aperto com força, e, com os olhos cheios de lágrimas, digo baixinho “Está bem! Vamos acabar com isso!” Mas, inquieta e angustiada a criança dentro de mim mal consegue controlar a vontade imensa de gritar:
- Por favor, George Sand, não morra!!

****

Tanto Gustave Flaubert quanto George Sand fizeram sucesso com suas obras junto ao público enquanto viveram, mas, depois da morte, Sand foi esquecida por muitos anos, enquanto Flaubert foi mais estudado e permaneceu canônico. Porém, recentemente entre 2014 e 2017 três livros dela foram traduzidos aqui[6] no Brasil. Será que sua vida e sua obra estão voltando a ocupar o lugar que merecem na literatura mundial? Ela estaria começando a reviver?





[1] Mon amie George Sand, um portrait selon Gustave Flaubert. La Nouvelle République, 1998
[2] Ibid. P 71-  tradução livre.
[3] FLAUBERT, Gustave; Chez Michel Lévy, 1862.
[5] Mon amie George Sand, um portrait selon Gustave Flaubert. La Nouvelle République, 1998. P 42 trad livre
[6] O carvalho falante (2014); História da minha vida (2017); François, o menino abandonado (2017).



6 comentários:

  1. Adorei o seu texto, muito bem escrito e poético, assim como a amizade entre George Sand e Flaubert! Viva George Sand, viva!

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  2. Uau, texto escrito de forma tão poética e sentimental. Quase dá pra sentir a angústia narrada. Bateu até aquele friozinho na barriga.

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  3. Ótimo texto! Obrigada por compartilhar!! bjos

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  4. Texto simplesmente encantador, tal qual a ingenuidade de Macabéa! Reflexões como essa nos fazem ter esperança em um futuro melhor para a boa literatura...

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  5. Ahhhhhhhhh....nao quero que George Sand morra também! Me transportei para o teu lugar e o livro tá apertado entre os meus braços.

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