quinta-feira, 26 de setembro de 2019

FURO DE REPORTAGEM (Conto de Cleudivan Jânio)



Furo de reportagem

Era uma aconchegante tarde de sábado e eu estava totalmente entregue à Orfeu. Ao acordar olhei para o visor de meu relógio, que marcava 17h00. De súbito percebi que estava deveras atrasado para o casamento de Glorinha, a filha do fazendeiro mais rico e bravo da região. Pois é, quem mandou ficar na boemia até o alvorecer? Agora estava atrasado para a cobertura jornalística desse “emocionante” evento que iria ocorrer nessa pequena cidade, que, diga-se de passagem, é pra lá de monótona e tediosa, onde os únicos fatos que o editor do jornal em que trabalho me permite cobrir, são as besteiras que a “alta sociedade” insiste em fazer, para não morrerem de tédio. Isso inclui bingos, leilões de quermesse, vaquejadas, exposições bovinas e de cães – que são sempre os mesmos animais -, sem falar nos batizados, aniversário e outros eventos sem nenhuma relevância.
Tomei um café amargo e “congelado”, que não me recordava em que século eu o havia passado, vesti minha melhor roupa, que consistia numa calça jeans já desbotada pelo tempo e uma camisa branca de mangas longas que ganhei de minha pobre mãe, durante os festejos natalinos do ano passado. Peguei minha bicicleta Monark, e logo senti a falta de um pedal, que acredito ter perdido na noite anterior. Despedi-me de Kilate, o meu cachorro, velho guerreiro de longas batalhas e lambidas no rosto ao me encontrar dormindo, pelas ruas e vielas da cidade, por conta da embriaguez.
Sai em disparada em pedaladas trôpegas pela Rua do Brejo, tomei a ladeira Reze Antes de Descer e encurtei o caminho pelo Beco da Maldade, que dava em frente à Avenida Ponta da Peixeira. Ao passar pelo Hospital Santa Genoveva, me deparei com algo inesperado: A única ambulância da cidade, que de tão velha tinha sua porta fechada com fios de enrolar cadeira de balanço, parava em frente à unidade hospitalar, quase me atropelando nesse feito. Por já estar totalmente atrasado, encostei minha magrela num poste e resolvi tomar satisfações com Gotardo, o motorista (parceiro de longas noites de bebedeiras). Foi quando percebi que dentro do veículo encontrava-se só arquejando padre Julião. Justo ele, que iria celebrar o “casamento do ano”. Usando das minhas atribuições de repórter detetive, logo deduzi: sem padre não há casamento.
Padre Julião quase inconsciente gemia demasiado na maca, aguardando a chegado do médico que se encontrava no horário de almoço. Aproximei-me do Sacerdote e perguntei o havia acontecido. O velho então me respondeu:
― Quem está aí? É o doutor que já chegou? ...ai!
― Não! Respondi. ― Sou eu, Abílio, o repórter do jornal O Estacionário, lembra-se?
Com um sorriso meio amarelo o velho pároco disse:
― Oh, desculpe meu filho, não o reconheci, estou cheio de dores e levei uma pancada na cabeça, minha mente está um pouco falha.
Logo percebi que havia algo errado, pois aquela “raposa velha” conhecia todos na cidade – do mais novo até o mais antigo morador daquele município. Foi então que ele pediu que eu me aproximasse, pois tinha algo para me falar. Foi o que eu fiz. E o velho continuou:
― Fui atacado por alguém e levei uma pisa sem precedentes. Só não me recordo quem foi o autor deste ato brutal contra um pobre ancião como eu. Só lembro que teve algo relacionado com o casamento que eu iria realizar hoje à tarde.
Após cinco minutos de conversa tive uma ideia inspirado pelo detetive Sherlock Holmes, em suas aventuras ao lado do Dr. Watson. Sugeri que ele falasse sobre as pessoas que possivelmente estariam prestigiando o casamento, talvez uma delas pudesse ser o autor(a) daquela barbárie. Então o velho começou:
―Ai!... Boa ideia, por quem começo?! Já sei, talvez D. Gasparina, tia da noiva, que é protestante, aquele brucutu...ops! digo, aquela boa senhora, que queria de toda maneira que sua sobrinha contraísse o matrimônio na igreja “concorrente”. Ela sempre anda com um guarda-chuva, pode ter sido ela!
Mas como bom observador que sou, lembrei ao padre que na semana passada, no aniversário da irmã mais nova da noiva, D. Gasparina comentou com sua amiga Fulgência que já que era da vontade de seu irmão, deveria se conformar que sua sobrinha se casasse mesmo na Igreja Católica, afinal era ele quem mandava e sustentava quase toda a família.
― Então não pode ter sido ela! - Disse o velho.
Pedi para ele esfriar a cabeça e pensar em outro suspeito.
― Será que foi o Astolfo, aquele bexiguento... ops! Aquele rapaz que veio lá dos cafundós da Bahia, que se esquenta com tudo e luta aquele negócio que dá uns cangapés. Olhe que ele não estava nem um pouco conformado com o noivado de Glorinha, sua ex-namorada.
Desta vez, lembrei-me que há mais ou menos um mês, dona Crisantina apresentou Luzia, a sobrinha de seu Aparício, a Astolfo, durante a exposição de cães. Na ocasião, o rapaz mostrou-se bastante interessado na moça. Disso eu me lembro bem, pois, ele sequer se importou quando Kilate fez xixi em sua perna. Expliquei isso ao padre e sugeri que ele citasse mais alguns suspeitos que pudessem ter interesse em impedir a cerimônia. Ele por sua vez, citou três pessoas: a própria noiva Glorinha, o noivo Frederico e o doutor Feliciano, o médico da família.
― Doutor Feliciano?! O que ele tem om tudo isso? - Indaguei.
Pe. Julião fez um esforço e continuou:
― É porque... é porque... por que era mesmo?! Ah! Lembrei! É por causa do exame.
Neste momento, o médico que iria atender o padre, chegou e falou:
― Falando em exame, vou te examinar agora. E você seu “fuinha” nos dê licença, pois, esta área é restrita apenas aos pacientes.
Peguei minha bike e me mandei para a Igreja Matriz, onde era esperado o casamento. Em direção ao local, comecei a matutar acerca de quem poderia ter espancado o velhote para não haver casamento. Me acalmei, esfriei a cabeça, que ainda “rodava”, diga-se de passagem, e procurei encontrar uma solução para o caso. Tentei seguir a pista dada pela vítima e comecei a divagar: Por que o Dr. Feliciano? Padre Julião informou que foi por causa do exame, mas que exame? Pode ser um exame ... sim é isso! Um exame ginecológico! O médico deve ter examinado Glorinha a pedido de seu noivo e constatado que ela não era mais “moça”, tendo informado ao vigário para não mais realizar a cerimônia. No entanto, o padre que era muito amigo de Tributino, o pai da noiva, decidiu omitir o fato para evitar um possível escândalo na cidade. Os dois devem ter discutido e o médico sem querer deve ter machucado o padre na cabeça, fugindo da cena para a história não se complicar mais ainda.
Me aproximei do local do evento e de cara notei que todos estavam em festa, pareciam esquisitos, mas festejando. Naquele momento, eu estava tão compenetrado com minhas ideias e a pressa era tamanha, que caí da bicicleta e me esborrachei no chão tal qual uma jaca madura ao desprender-se do pé. Fui socorrido por doutor Feliciano e outras pessoas que por hora não me recordo. Naquele momento sequer me importei com as dores provenientes das escoriações, e sim, com a matéria do século, depois do salvamento do jegue de Juvenal da enchente do ano passado.
Informaram-me que o casamento já havia sido realizado. Naquele instante não entendi mais nada. Chamei o doutor num canto de parede, coloquei para ele todas as minhas habilidades investigativas, indagando-o se havia me saído bem no papel de detetive. Narrei tudo a ele, desde o porre da noite passada, até a queda da bicicleta, ele quase se escangalhou de rir e contou a sua versão para o caso:
― Meu caro Abílio, em partes você está certo, mas não fui eu que agredi padre Julião!
― Então foi o noivo? – Perguntei. – O Sr. Informou o informou do resultado do exame, ele, porém chateado, foi falar com o celebrante, tendo os dois discutido...
― Neste caso, meu caro repórter, não haveria casamento mesmo! Já que o noivo renunciaria. – Respondeu o médico - Você está errado num ponto: o noivo ainda não sabe que ela fora deflorada. O coitado só saberá na noite de núpcias, ou seja, logo mais!
― Então quem mandou fazer o exame? Não vá me dizer que foi Sr. Tributino!?
O médico afirmou que fora realmente o velho fazendeiro que solicitara tal exame. Nesse momento, todos se dirigiam cambaleantes para a recepção na casa da noiva. Doutor Feliciano me ofereceu uma carona em sua caminhoneta D-20, logo coloquei a bicicleta na carroceria e fomos conversando durante o percurso. Perguntei por que todos estavam entorpecidos. Sorrindo, ele me fez um breve relato:
― Você perdeu o fuzuê que ocorreu na cerimônia. O padre demorou a chegar, aliás, como você sabe, nem chegou; o pessoal começou a ficar inquieto; a noiva ficou nervosa e começou a choramingar baixinho; o tio dela, que a conduziria até o altar, porque seu pai também não havia chegado de início tentou consolá-la. Não obtendo êxito, perdeu a paciência e iniciou uma leve discussão com a sobrinha; a mãe da noiva, que por sua vez suava mais que tampa de chaleira, discutiu com o noivo; a partir de então, meu amigo, a vaca foi para o brejo!
Espantado com toda a história, perguntei:
― Onde estava o pai da noiva nesse momento? Não era ele que deveria conduzir a noiva?
Respondeu-me o médico:
― Ele chegou atrasado, não se sabe de onde, banhado em suor e alterado, a confusão instaurada era tão grande que ninguém notou a sua chegada. O velho, esquentado que só ele, diante de toda a confusão já armada, sacou um revólver, deu dois tiros para o alto. Nesse instante, meu amigo, o circo incendiou de vez! Todos ficaram à flor da pele. Mãe e filha começaram a chorar; o noivo desmaiou. Foi então que me surgiu uma ideia: chamei o Sr. Tributino à sacristia e sugeri que colocássemos calmante na água que estava sendo servida naquela ocasião. E assim foi feito. É por isso que todos estão assim, ébrios. Logo após a poeira ter assentado, o fazendeiro, alegando que o pároco não poderia vir, pois se encontrava muito doente (de fato), autorizara um diácono por nome de Francisco Lisboa (mais conhecido como Chico Caçote) a celebrar o casamento. E assim foi feito!
Chegando à casa do Sr. Tributino, juntei o restante do quebra-cabeças. Ora, se o pai da noiva chegou atrasado, não se sabe de onde, suado e nervoso, provocando uma confusão maior do que a que já estava instaurada, estava na cara que foi ele que espancou padre Julião, por este recusar-se a celebrar o casamento de Frederico, advogado famoso, aliás, o único da cidade, inocentemente com uma mulher “desonrada”. Naquele instante só pensei em me tornar um repórter de verdade. Seria a melhor matéria já publicada desde a fundação do jornaleco O Estacionário, superando o episódio do jegue de Juvenal.
Claro que eu não fui confirmar com o velho a veracidade de minhas conclusões, pois, bem sabia que ele estava armado. Além da autoria do espancamento do padre, outra questão pairava no ar: quem havia se aproveitado da “inocência” de Glorinha? Minha intenção foi perguntar à própria, mas, como faria isso? Foi então, que percebi que os convidados tinham direito a uma dança com a recém-casada. Esperei um pouco, tendo sido o terceiro a dançar com ela. Amigos desde a infância, já tínhamos certa intimidade; contei a ela tudo o que havia me ocorrido desde a noite anterior, até aquele momento; então fiz a pergunta que todos iriam ter interesse em saber posteriormente. Ela me respondeu sorrindo mostrando seus belos dentes:
― Foi no ano passado durante a enchente, enquanto todos estavam ocupados tentando salvar o jegue de Juvenalzinho. Fiquei ilhada na casa do sítio de papai, imagina com quem?!
Usando a minha massa cinzenta, lembrei-me que o único personagem que não se encontrara na cena da salvação do jegue, era o próprio dono, que só ficou sabendo de tudo após o ocorrido. Ela, então, confirmou imediatamente, novamente exibindo seu belo sorriso, e continuou a história:
― Ele foi buscar uma galinha que papai tinha lhe prometido, foi então que a barreira do açude arrebentou e inundou tudo. Fiquei desesperada, comecei a chorar. Juvenal teve a ideia de irmos para o alto de uma pedra que existe no sítio. Molhados, cansados e com a roupa rasgada em alguns pontos, me desesperei, achando que iria morrer. Ele me abraçou, me consolou... Eu que já sentia uma quedinha por ele, não pude evitar que acontecesse.

*****
O casamento, por sua vez, foi anulado a pedido do noivo no dia seguinte, logo que constatou a condição de sua, agora, ex-esposa. Dois dias após o acontecido, o velho Tributino após pagar uma fiança pelo crime cometido contra o padre e se comprometer em colaborar com a reforma da igreja, naquele ano, me chamou em sua casa, para uma conversa reservada. Na oportunidade, ele me proibiu de publicar uma linha sequer do ocorrido. Deu-me duas passagens, uma boa quantia e uma carta de recomendações a um amigo seu, diretor de um jornal em Natal. Junto com tudo isso, me entregou também, a bela Glorinha como prêmio pelo meu silêncio.
Neste exato momento, eu, Glorinha e meu fiel amigo Kilate, estamos seguindo para a capital potiguar, em busca de uma nova vida, enquanto os demais continuam nessa cidade monótona, torcendo para que logo aconteça algo que venha a sacudir novamente o dia a dia de seus habitantes.

Abílio (o repórter boêmio)



Autobiografia do autor:

Nascido em Currais Novos em 20/06/77, embora natural de Campo Redondo/RN, onde sou registrado. Filho de Terezinha Izabel Campelo de Araújo (professora primária), falecida de parto em 1980 e José Cardoso de Araújo (Pedreiro), falecido em 1982 de acidente automobilístico. Criado junto com meu irmão mais velho, por tios em Natal/RN desde 1983, com uma pequena temporada no Estado do Rio de Janeiro (set/1983 a mar/1985), onde aprendia ler.
Lá aprendi a ler em casa e iniciei aos 6 anos e meio de idade os estudos, tendo passado apenas duas semanas na 1ª série, indo direto para a 2ª, para desespero total da Diretora da Escola Estadual Trazilbo Filgueira (localizada no Bairro Jardim Catarina, São Gonçalo/RJ). Há época ela não queria admitir minha matrícula na escola porque eu não havia ainda, completado 7 anos de idade, o que só ocorreria em junho/1984. O fato é que minha tia armou uma espécie de barraco por lá e disse que não ia ficar comigo em casa perdendo tempo, porque já sabia ler e escrever, sob o olhar incrédulo da Diretora, que para acabar com a celeuma resolveu admitir a matrícula. Não sabia ela o que a esperava kkkk.
De fato, eu já sabia ler e escrever. Foi aí que na segunda semana de aula, após uma atividade de ligar objetos similares, entediado, virei a folha mimeografada (é o novo!) e comecei a escrever palavras avulsas como uma espécie de cruzadas. A professora se aproximou e perguntou? Você sabe escrever? Eu timidamente disse: Sei! Ela me pegou pelo braço e levou para a Diretora e disse: esse menino não fica mais em minha sala, passe-o para a 2ª série na próxima semana. A diretora disse: “De jeito nenhum!” Daí ela quis tirar a prova dos nove e me levou para a biblioteca, onde li em alto e bom som um texto intitulado: “A Chácara de Chico Bolacha”.
Daí pra frente foi só aprimorar as leituras: Walt Disney, HQ’s Marvel e D.C. Comics, Série Vaga-lume, Faroestes de bolso, Agatha Christie, Conan Doyle, Gabriel Garcia Márquez, Suassuna e cia.
No início do Séc. XXI (2001/2003), junto com os amigos Miguel Rude e Geilson Volking, editamos o Fanzine 100 Ideias, que veiculou em quatro edições. Após divergências da linha editorial do zine, criei o Zine Espólio, que teve vida mais breve, apenas dois números, em função de minhas ocupações com o trabalho e faculdade. O 100 Ideias, por sua vez, só teve mais um editado pelos dois amigos.
Outra coisa peculiar em minha trajetória ocorreu, quando ainda na passagem de criança para a adolescência, tive o primeiro contato com os selos postais através de um colega, no ginasial. Aos 16 anos de idade fui estagiar em uma Agência de Correios franqueada (onde trabalhei por 4 anos) e novamente tive contato com os selos postais e iniciai na arte da Filatelia. Muitos me perguntavam: Para quê juntar essas porcarias? Eu dizia: “Deixe que um dia há de servir para alguma coisa. De fato, aflito por estar terminando o curso de Pedagogia, na UFRN, e não ter até então ideia do que iria me ater em meu trabalho final, resolvi, perguntar a meu professor da disciplina Ensino de História, se havia a possibilidade de fazer uma monografia utilizando as imagens dos selos postais. A resposta foi imediata e ele, inclusive, disse que me orientaria. Foi aí que surgiu o meu livro (O Rio Grande do Norte nos selos postais do Brasil: filatelia como fonte do conhecimento), que foi fruto desse trabalho de final de curso e culminou na gênese da Editora CJA.    
Essa minha identidade “secreta” (editor) – hoje não mais – foi muito complicada em função de ter, durante 7 anos, acumulado com o trabalho nos Correios, onde cumpria jornada de 8 horas de trabalho diário. Nos Correios, onde passei 22 anos e decidi pedir exoneração, agora em maio de 2019, desempenhei várias atividades, dentre elas: carteiro (como ingressei), atendente e gerente de agência, assistente comercial, pregoeiro, chefe de seção de contratação e gestão de contratos e outras.


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