Furo de reportagem
Era
uma aconchegante tarde de sábado e eu estava totalmente entregue à Orfeu. Ao
acordar olhei para o visor de meu relógio, que marcava 17h00. De súbito percebi
que estava deveras atrasado para o casamento de Glorinha, a filha do fazendeiro
mais rico e bravo da região. Pois é, quem mandou ficar na boemia até o
alvorecer? Agora estava atrasado para a cobertura jornalística desse
“emocionante” evento que iria ocorrer nessa pequena cidade, que, diga-se de
passagem, é pra lá de monótona e tediosa, onde os únicos fatos que o editor do
jornal em que trabalho me permite cobrir, são as besteiras que a “alta
sociedade” insiste em fazer, para não morrerem de tédio. Isso inclui bingos,
leilões de quermesse, vaquejadas, exposições bovinas e de cães – que são sempre
os mesmos animais -, sem falar nos batizados, aniversário e outros eventos sem
nenhuma relevância.
Tomei
um café amargo e “congelado”, que não me recordava em que século eu o havia
passado, vesti minha melhor roupa, que consistia numa calça jeans já desbotada pelo
tempo e uma camisa branca de mangas longas que ganhei de minha pobre mãe,
durante os festejos natalinos do ano passado. Peguei minha bicicleta Monark, e
logo senti a falta de um pedal, que acredito ter perdido na noite anterior. Despedi-me
de Kilate, o meu cachorro, velho guerreiro de longas batalhas e lambidas no
rosto ao me encontrar dormindo, pelas ruas e vielas da cidade, por conta da
embriaguez.
Sai
em disparada em pedaladas trôpegas pela Rua do Brejo, tomei a ladeira Reze Antes
de Descer e encurtei o caminho pelo Beco da Maldade, que dava em frente à
Avenida Ponta da Peixeira. Ao passar pelo Hospital Santa Genoveva, me deparei
com algo inesperado: A única ambulância da cidade, que de tão velha tinha sua
porta fechada com fios de enrolar cadeira de balanço, parava em frente à
unidade hospitalar, quase me atropelando nesse feito. Por já estar totalmente
atrasado, encostei minha magrela num poste e resolvi tomar satisfações com
Gotardo, o motorista (parceiro de longas noites de bebedeiras). Foi quando
percebi que dentro do veículo encontrava-se só arquejando padre Julião. Justo
ele, que iria celebrar o “casamento do ano”. Usando das minhas atribuições de
repórter detetive, logo deduzi: sem padre não há casamento.
Padre
Julião quase inconsciente gemia demasiado na maca, aguardando a chegado do
médico que se encontrava no horário de almoço. Aproximei-me do Sacerdote e
perguntei o havia acontecido. O velho então me respondeu:
― Quem está
aí?
É
o doutor que já chegou? ...ai!
― Não!
Respondi. ― Sou eu, Abílio,
o repórter do jornal O Estacionário,
lembra-se?
Com
um sorriso meio amarelo o velho pároco disse:
― Oh, desculpe meu filho,
não
o reconheci, estou cheio de dores e levei uma pancada na cabeça, minha mente
está um pouco falha.
Logo
percebi que havia algo errado, pois aquela “raposa velha” conhecia todos na
cidade – do mais novo até o mais antigo morador daquele município. Foi então
que ele pediu que eu me aproximasse, pois tinha algo para me falar. Foi o que
eu fiz. E o velho continuou:
― Fui atacado por alguém
e levei uma pisa sem precedentes. Só não
me recordo quem foi o autor deste ato brutal contra um pobre ancião
como eu. Só lembro que teve algo relacionado com o
casamento que eu iria realizar hoje à tarde.
Após
cinco minutos de conversa tive uma ideia inspirado pelo detetive Sherlock
Holmes, em suas aventuras ao lado do Dr. Watson. Sugeri que ele falasse sobre
as pessoas que possivelmente estariam prestigiando o casamento, talvez uma delas
pudesse ser o autor(a) daquela barbárie. Então o velho começou:
―Ai!... Boa ideia, por
quem começo?! Já sei, talvez D.
Gasparina, tia da noiva, que é protestante, aquele
brucutu...ops! digo, aquela boa senhora, que queria de toda maneira que sua
sobrinha contraísse o matrimônio na igreja “concorrente”.
Ela sempre anda com um guarda-chuva, pode ter sido ela!
Mas
como bom observador que sou, lembrei ao padre que na semana passada, no
aniversário da irmã mais nova da noiva, D. Gasparina comentou com sua amiga
Fulgência que já que era da vontade de seu irmão, deveria se conformar que sua
sobrinha se casasse mesmo na Igreja Católica, afinal era ele quem mandava e
sustentava quase toda a família.
― Então
não
pode ter sido ela! - Disse o velho.
Pedi
para ele esfriar a cabeça e pensar em outro suspeito.
―
Será
que foi o Astolfo, aquele bexiguento... ops! Aquele rapaz que veio lá
dos cafundós da Bahia, que se esquenta com tudo e luta
aquele negócio que dá uns cangapés. Olhe que ele não
estava nem um pouco conformado com o noivado de Glorinha, sua ex-namorada.
Desta
vez, lembrei-me que há mais ou menos um mês, dona Crisantina apresentou Luzia,
a sobrinha de seu Aparício, a Astolfo, durante a exposição de cães. Na ocasião,
o rapaz mostrou-se bastante interessado na moça. Disso eu me lembro bem, pois,
ele sequer se importou quando Kilate fez xixi em sua perna. Expliquei isso ao padre
e sugeri que ele citasse mais alguns suspeitos que pudessem ter interesse em
impedir a cerimônia. Ele por sua vez, citou três pessoas: a própria noiva
Glorinha, o noivo Frederico e o doutor Feliciano, o médico da família.
― Doutor Feliciano?! O
que ele tem om tudo isso? - Indaguei.
Pe.
Julião fez um esforço e continuou:
― É
porque... é porque... por que era mesmo?! Ah! Lembrei! É por causa do exame.
Neste
momento, o médico que iria atender o padre, chegou e falou:
― Falando em exame, vou
te examinar agora. E você seu “fuinha”
nos dê licença, pois, esta área
é
restrita apenas aos pacientes.
Peguei
minha bike e me mandei para a Igreja Matriz, onde era esperado o casamento. Em
direção ao local, comecei a matutar acerca de quem poderia ter espancado o
velhote para não haver casamento. Me acalmei, esfriei a cabeça, que ainda “rodava”,
diga-se de passagem, e procurei encontrar uma solução para o caso. Tentei
seguir a pista dada pela vítima e comecei a divagar: Por que o Dr. Feliciano? Padre Julião informou que foi por causa do
exame, mas que exame? Pode ser um exame ... sim é isso! Um exame ginecológico!
O médico deve ter examinado Glorinha a pedido de seu noivo e constatado que ela
não era mais “moça”, tendo informado ao vigário para não mais realizar a
cerimônia. No entanto, o padre que era muito amigo de Tributino, o pai da
noiva, decidiu omitir o fato para evitar um possível escândalo na cidade. Os
dois devem ter discutido e o médico sem querer deve ter machucado o padre na
cabeça, fugindo da cena para a história não se complicar mais ainda.
Me
aproximei do local do evento e de cara notei que todos estavam em festa,
pareciam esquisitos, mas festejando. Naquele momento, eu estava tão
compenetrado com minhas ideias e a pressa era tamanha, que caí da bicicleta e
me esborrachei no chão tal qual uma jaca madura ao desprender-se do pé. Fui socorrido
por doutor Feliciano e outras pessoas que por hora não me recordo. Naquele
momento sequer me importei com as dores provenientes das escoriações, e sim,
com a matéria do século, depois do salvamento do jegue de Juvenal da enchente
do ano passado.
Informaram-me
que o casamento já havia sido realizado. Naquele instante não entendi mais
nada. Chamei o doutor num canto de parede, coloquei para ele todas as minhas habilidades
investigativas, indagando-o se havia me saído bem no papel de detetive. Narrei
tudo a ele, desde o porre da noite passada, até a queda da bicicleta, ele quase
se escangalhou de rir e contou a sua versão para o caso:
― Meu caro Abílio,
em partes você está certo, mas não
fui eu que agredi padre Julião!
― Então
foi o noivo? – Perguntei. – O Sr. Informou o
informou do resultado do exame, ele, porém chateado, foi falar
com o celebrante, tendo os dois discutido...
― Neste caso, meu caro
repórter, não haveria casamento
mesmo! Já que o noivo renunciaria. –
Respondeu o médico - Você está
errado num ponto: o noivo ainda não sabe que ela fora
deflorada. O coitado só saberá na noite de núpcias, ou seja, logo mais!
― Então
quem mandou fazer o exame? Não vá
me dizer que foi Sr. Tributino!?
O
médico afirmou que fora realmente o velho fazendeiro que solicitara tal exame.
Nesse momento, todos se dirigiam cambaleantes para a recepção na casa da noiva.
Doutor Feliciano me ofereceu uma carona em sua caminhoneta D-20, logo coloquei a
bicicleta na carroceria e fomos conversando durante o percurso. Perguntei por
que todos estavam entorpecidos. Sorrindo, ele me fez um breve relato:
― Você
perdeu o fuzuê que ocorreu na cerimônia. O padre demorou a chegar, aliás, como
você sabe, nem chegou; o pessoal começou a ficar inquieto; a noiva ficou
nervosa e começou a choramingar baixinho; o tio dela, que a conduziria até o altar,
porque seu pai também não havia chegado de início tentou consolá-la. Não
obtendo êxito, perdeu a paciência e iniciou uma leve discussão com a sobrinha;
a mãe da noiva, que por sua vez suava mais que tampa de chaleira, discutiu com
o noivo; a partir de então, meu amigo, a vaca foi para o brejo!
Espantado
com toda a história, perguntei:
― Onde estava o pai da
noiva nesse momento? Não era ele que deveria conduzir a noiva?
Respondeu-me
o médico:
― Ele chegou atrasado, não
se sabe de onde, banhado em suor e alterado, a confusão instaurada era tão
grande que ninguém notou a sua chegada. O velho, esquentado que só ele, diante
de toda a confusão já armada, sacou um revólver, deu dois tiros para o alto.
Nesse instante, meu amigo, o circo incendiou de vez! Todos ficaram à flor da
pele. Mãe e filha começaram a chorar; o noivo desmaiou. Foi então que me surgiu
uma ideia: chamei o Sr. Tributino à sacristia e sugeri que colocássemos
calmante na água que estava sendo servida naquela ocasião. E assim foi feito. É
por isso que todos estão assim, ébrios. Logo após a poeira ter assentado, o
fazendeiro, alegando que o pároco não poderia vir, pois se encontrava muito
doente (de fato), autorizara um
diácono por nome de Francisco Lisboa (mais
conhecido como Chico Caçote) a celebrar o casamento. E assim foi feito!
Chegando
à casa do Sr. Tributino, juntei o restante do quebra-cabeças. Ora, se o pai da
noiva chegou atrasado, não se sabe de onde, suado e nervoso, provocando uma
confusão maior do que a que já estava instaurada, estava na cara que foi ele
que espancou padre Julião, por este recusar-se a celebrar o casamento de
Frederico, advogado famoso, aliás, o único da cidade, inocentemente com uma
mulher “desonrada”. Naquele instante só pensei em me tornar um repórter de
verdade. Seria a melhor matéria já publicada desde a fundação do jornaleco O
Estacionário, superando o episódio do jegue de Juvenal.
Claro
que eu não fui confirmar com o velho a veracidade de minhas conclusões, pois,
bem sabia que ele estava armado. Além da autoria do espancamento do padre,
outra questão pairava no ar: quem havia se aproveitado da “inocência” de
Glorinha? Minha intenção foi perguntar à própria, mas, como faria isso? Foi
então, que percebi que os convidados tinham direito a uma dança com a
recém-casada. Esperei um pouco, tendo sido o terceiro a dançar com ela. Amigos
desde a infância, já tínhamos certa intimidade; contei a ela tudo o que havia
me ocorrido desde a noite anterior, até aquele momento; então fiz a pergunta
que todos iriam ter interesse em saber posteriormente. Ela me respondeu
sorrindo mostrando seus belos dentes:
― Foi no ano passado
durante a enchente, enquanto todos estavam ocupados tentando salvar o jegue de
Juvenalzinho. Fiquei ilhada na casa do sítio de papai, imagina
com quem?!
Usando
a minha massa cinzenta, lembrei-me que o único personagem que não se encontrara
na cena da salvação do jegue, era o próprio dono, que só ficou sabendo de tudo
após o ocorrido. Ela, então, confirmou imediatamente, novamente exibindo seu
belo sorriso, e continuou a história:
― Ele foi buscar uma
galinha que papai tinha lhe prometido, foi então que a barreira do açude
arrebentou e inundou tudo. Fiquei desesperada, comecei a chorar. Juvenal teve a
ideia de irmos para o alto de uma pedra que existe no sítio. Molhados, cansados
e com a roupa rasgada em alguns pontos, me desesperei, achando que iria morrer.
Ele me abraçou, me consolou... Eu que já sentia uma quedinha por ele, não pude
evitar que acontecesse.
*****
O
casamento, por sua vez, foi anulado a pedido do noivo no dia seguinte, logo que
constatou a condição de sua, agora, ex-esposa. Dois dias após o acontecido, o
velho Tributino após pagar uma fiança pelo crime cometido contra o padre e se
comprometer em colaborar com a reforma da igreja, naquele ano, me chamou em sua
casa, para uma conversa reservada. Na oportunidade, ele me proibiu de publicar
uma linha sequer do ocorrido. Deu-me duas passagens, uma boa quantia e uma
carta de recomendações a um amigo seu, diretor de um jornal em Natal. Junto com
tudo isso, me entregou também, a bela Glorinha como prêmio pelo meu silêncio.
Neste
exato momento, eu, Glorinha e meu fiel amigo Kilate, estamos seguindo para a
capital potiguar, em busca de uma nova vida, enquanto os demais continuam nessa
cidade monótona, torcendo para que logo aconteça algo que venha a sacudir
novamente o dia a dia de seus habitantes.
Abílio (o
repórter boêmio)
Autobiografia do autor:
Nascido
em Currais Novos em 20/06/77, embora natural de Campo Redondo/RN, onde sou
registrado. Filho de Terezinha Izabel Campelo de Araújo (professora primária),
falecida de parto em 1980 e José Cardoso de Araújo (Pedreiro), falecido em 1982
de acidente automobilístico. Criado junto com meu irmão mais velho, por tios em
Natal/RN desde 1983, com uma pequena temporada no Estado do Rio de Janeiro
(set/1983 a mar/1985), onde aprendia ler.
Lá
aprendi a ler em casa e iniciei aos 6 anos e meio de idade os estudos, tendo
passado apenas duas semanas na 1ª série, indo direto para a 2ª, para desespero
total da Diretora da Escola Estadual Trazilbo Filgueira (localizada no Bairro
Jardim Catarina, São Gonçalo/RJ). Há época ela não queria admitir minha
matrícula na escola porque eu não havia ainda, completado 7 anos de idade, o
que só ocorreria em junho/1984. O fato é que minha tia armou uma espécie de
barraco por lá e disse que não ia ficar comigo em casa perdendo tempo, porque
já sabia ler e escrever, sob o olhar incrédulo da Diretora, que para acabar com
a celeuma resolveu admitir a matrícula. Não sabia ela o que a esperava kkkk.
De
fato, eu já sabia ler e escrever. Foi aí que na segunda semana de aula, após
uma atividade de ligar objetos similares, entediado, virei a folha mimeografada
(é o novo!) e comecei a escrever palavras avulsas como uma espécie de cruzadas.
A professora se aproximou e perguntou? Você sabe escrever? Eu timidamente
disse: Sei! Ela me pegou pelo braço e levou para a Diretora e disse: esse
menino não fica mais em minha sala, passe-o para a 2ª série na próxima semana.
A diretora disse: “De jeito nenhum!” Daí ela quis tirar a prova dos nove
e me levou para a biblioteca, onde li em alto e bom som um texto intitulado: “A
Chácara de Chico Bolacha”.
Daí
pra frente foi só aprimorar as leituras: Walt Disney, HQ’s Marvel e D.C.
Comics, Série Vaga-lume, Faroestes de bolso, Agatha Christie, Conan Doyle,
Gabriel Garcia Márquez, Suassuna e cia.
No
início do Séc. XXI (2001/2003), junto com os amigos Miguel Rude e Geilson
Volking, editamos o Fanzine 100 Ideias, que veiculou em quatro edições. Após
divergências da linha editorial do zine, criei o Zine Espólio, que teve vida
mais breve, apenas dois números, em função de minhas ocupações com o trabalho e
faculdade. O 100 Ideias, por sua vez, só teve mais um editado
pelos dois amigos.
Outra
coisa peculiar em minha trajetória ocorreu, quando ainda na passagem de criança
para a adolescência, tive o primeiro contato com os selos postais através de um
colega, no ginasial. Aos 16 anos de idade fui estagiar em uma Agência de
Correios franqueada (onde trabalhei por 4 anos) e novamente tive contato com os
selos postais e iniciai na arte da Filatelia. Muitos me perguntavam: Para quê
juntar essas porcarias? Eu dizia: “Deixe que um dia há de servir para alguma
coisa. De fato, aflito por estar terminando o curso de Pedagogia, na UFRN, e
não ter até então ideia do que iria me ater em meu trabalho final, resolvi,
perguntar a meu professor da disciplina Ensino de História, se havia a
possibilidade de fazer uma monografia utilizando as imagens dos selos postais.
A resposta foi imediata e ele, inclusive, disse que me orientaria. Foi aí que
surgiu o meu livro (O Rio Grande do Norte nos selos postais do Brasil:
filatelia como fonte do conhecimento), que foi fruto desse trabalho de final de
curso e culminou na gênese da Editora CJA.
Essa
minha identidade “secreta” (editor) – hoje não mais – foi muito complicada em
função de ter, durante 7 anos, acumulado com o trabalho nos Correios, onde
cumpria jornada de 8 horas de trabalho diário. Nos Correios, onde passei 22
anos e decidi pedir exoneração, agora em maio de 2019, desempenhei várias
atividades, dentre elas: carteiro (como ingressei), atendente e gerente de
agência, assistente comercial, pregoeiro, chefe de seção de contratação e
gestão de contratos e outras.
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