sábado, 30 de dezembro de 2017

Reflexões sobre um poema para Ademar Macedo - Gilberto Cardoso dos Santos


Reflexões sobre um poema para Ademar Macedo

Quando penso em Ademar Macedo e em Manoel Cavalcante, no convívio sereno que tiveram e mútuos benefícios adquiridos, vêm-me à mente os personagens bíblicos  Gamaliel e Paulo de Tarso. Disse Paulo que em sua juventude fora instruído "aos pés de Gamaliel". O mesmo diria Manoel Cavalcante acerca de Ademar pois, quando este ainda engatinhava na arte de versejar, teve o privilégio de conviver com o inesquecível versejador e por ele foi instruído sobre o necessário respeito e devoção  à trindade do cordel "Rima, métrica e oração". Não foi instruído aos pés, mas ao único pé de Ademar e aprendeu a revestir seus insights poéticos com botas de sete-léguas. Por benefícios mútuos refiro-me ao seguinte: Ao lado de Manoel, Ademar mantinha desperto seu lado criança; Manoel, por sua vez, amadurecia como ser humano e como poeta ao lado dele. 

Mais que professor voluntário, Ademar foi tudo em um: pai, amigo, muso, poema humano, livro e irmão. Se hoje Manoel desfila belamente em passarelas de versos e nas academias, é porque o aleijado Ademar, que jamais admitiria um verso de pé quebrado, foi um andajá em sua  formação - aquela mão que o sustentava quando perigava cair. Foi um espelho mágico no qual ele, Manoel, narcisisticamente se mirou tentando assemelhar-se ao que via. Sempre que  o invocou com um repetido "espelho meu", ouviu palavras de incentivo, impulsionadoras de tudo que ele viria a se tornar. Os olhos do trovador fizeram-se lentes e, através destas, Manoel mudou radicalmente sua forma de perceber o mundo. 

Um dos momentos mais tristes da vida do jovem vate deu-se quando foi-lhe noticiado que Ademar recebera do médico um diagnóstico aterradoramente negativo. Infelizmente, a realidade sobrepunha-se à poesia; a distopia dardejava a utopia. Todavia, à semelhança do que ocorre na  antológica cena do filme Luzes da cidade  em que o vagabundo chora e ri ao se revelar à ex-cega a quem amava, o jovem Manoel, a um tempo querendo expressar sua dor e aliviar a do mestre, deu certa sublimidade ao  momento através de um agridoce poema; misturou em doses equilibradas riso e choro. Aspirou o suave perfume da rosa oferecida ao mestre enquanto se feria em seus espinhos. Este foi o modo que encontrou para solidarizar-se com o mestre e consigo mesmo.

O "Poema a Ademar" carinhosamente escrito por Manoel Cavalcante para o saudoso trovador Ademar Macedo quando este noticiou a gravidade do estado de saúde em que se achava, tragicomicamente expressa o espanto que todos tivemos naquele instante. Ambos eram amicíssimos e o poema, apesar da pitada de humor negro, foi efusivamente recebido  pelo convalescente poeta. Cúmplices, estavam cônscios dos sedosos e inquebrantáveis laços de afeto que os uniam para além da morte e da vida. Ao ler as estrofes, ao perceber o eu te amo que pulsava nas entrelinhas, Ademar exclamou: O diabo é quem morre mais com um poema desse! - ( Gilberto Cardoso dos Santos)


Poema a Ademar (Manoel Cavalcanti)

Infeliz das costa oca
Você já nasceu com sorte,
Trate de lavar a boca
Quando for falar em morte.
Deixe este mal infecundo
Vá mentir no “mei do mundo”
Dizer que mora em Genebra,
Pois você sabe, aleijado,
Daquele velho ditado
Que vaso ruim não se quebra...

Perante problemas plenos
Já venceu toda parada
Isso agora é o de menos,
Uma coisinha de nada...
“Cê” vai morrer uma ova
Vai desbulhar muita trova
E pode deixar de dengo
Que nada lhe desanima
Você só tem muito é rima
Acumulada no quengo.

Sua presença é eterna
Neste meu coração brando,
Seu juízo é como a perna,
Inda tem, mas ta faltando...
No e-mail, eu vi piada
Vai do céu subir a escada??
Não acha ter nada errado??
A Deus eu vou dar gorjeta
Porque se for de muleta
Vai demorar um bocado...

Nós já morremos de rir
E eu vou morrer de desgosto
Quando a morte decidir
Rir das rugas de seu rosto.
Já foi diagnosticado
Sendo no exame encontrado
Um câncer na dura-máter,
Mas meu ego desafia
E duvida que algum dia
Surja um mal no seu caráter.

Li seu e-mail na sexta
E vi numa história linda
Que dá tempo de ser besta
Por bastante tempo ainda...
Cair todo mundo cai,
Morrer todo mundo vai,
Mas como você não presta,
Eu lhe convido, Ademar,
Vamos morrer de mangar
E rir que só a mulesta...!

Amanhã ligue pra mim,
Como faz, pra dar pitaco,
E me dizer bem assim:
“-Pense num poema fraco
Esse que você me fez...!”
Que aí vai ser minha vez
De eu mostrar minha manobra
E confessar a você
Que eu já entendi por quê
Deus nunca deu perna a cobra...

Que charada mais completa
Dizer assim sem alento
Que vai morrer o poeta,
“Apois” tu és um jumento...
O cão que vai ser defunto,
Pode mudar de assunto,
Mas pensando muito bem...,
Se um dia fores embora
Vai me dar na mesma hora
Vontade de ir também...

Mas vamos seguir brincando
Procuremos outro norte
Que eu num quero nem pagando
Falar em diabo de morte!!!
Eu com você conviver
Pra mim é grande o prazer,
Pois lições você me dá...
Eu já cancelei meu choro
Pode deixar de “algôro”
Minta e se lasque pra lá!!

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