O
carregador de celular
(Cecília Nascimento)
Benício, menino
tranquilo do interior do Ceará, virou Beninha, na adolescência, e levava os dias a viajar com uma trupe de
atores itinerantes pelo interior do estado, exalando arte, cultura e muito
mais... A essa altura, contava já com os seus 20 anos e sempre foi simpático e
cordial com todos os convivas.
Nos últimos dias,
havíamos acampado numa cidadezinha qualquer, alugado um casebre onde dividíamos
as despesas. Um dia, fazíamos shows nos barzinhos à noite em troca de jantar,
noutro, apresentávamos teatro de rua na praça pública e passávamos o chapéu.
Éramos ao todo uns 18 e com os trocados que recebíamos, comprávamos pão, pinga
e cigarros, pro dia nascer feliz.
Naquela semana, em
especial, Beninha estava atordoada não sabemos por que... Ouvi até ela dizer-me
que iria à igreja, precisava orar para se acalmar. E assim o fez. Mas, naquela
tarde, chegou ao casebre onde estávamos alojados e perguntou-nos a cada um onde
estava o carregador do seu celular... Meus colegas e eu não sabíamos ou, se
alguém tomou posse do mesmo, certamente não assumiria; tão unidos que sempre
fomos; só que não...
Beninha reuniu toda sua
indignação, estilo e determinação e informou-nos que sairia e quando
retornasse, queria que seu carregador estivesse posto numa mesa à vista de
todos. Saiu, voltou e não teve seu desejo atendido... Como gostasse de mim,
disse:
_ Querida, pegue suas bolsas e suma
daqui que vou tocar fogo nessa casa e é agora!
_ Oxe, amiga, deixe de onda! É claro que
não vai fazer isso! Retruquei-lhe.
Naquele momento, eu
acabara de lavar a louça e sentara-me à mesa, com meu recém-preparado almoço.
Beninha sumiu por
alguns instantes e reapareceu com um colchão velho... Posicionou-o na porta da
cozinha e gritou:
_ Salve-se quem puder que vou tocar fogo
nessa casa agora!
Eu, ainda sem
acreditar, continuava a pôr colheradas na boca, desatenta a qualquer sinal de
perigo, mas observando tudo como quem assiste a um jornal sem dar a menor
atenção às notícias.
Beninha, já com um rolo
de papel amassado na mão, deu de garra de um isqueiro e queimou o papel que,
com velocidade, abraçou o colchão velho com muita paixão. Para acabar de
arrebentar, pegou um desodorante aerossol e disparou o jato de baixo para cima,
o que fez subir uma lavareda imensa até o teto.
Rapidamente as chamas
se alastraram por todo o casebre. Ainda concentrada em mim mesma, ouvia ao
longe os companheiros gritando e me chamando... Um deles, veio, agarrou-me pelo
braço e me puxou pela porta dos fundos... Outro, magrinho que só ele, não se
sabe como arranjou força e coragem, mas agarrou-se com o fogão e o botijão de
gás e lançou-os à sala de estar, salvando-nos de uma explosão.
Já na calçada, a ficha
foi caindo e me dei conta de todo o alvoroço... A vizinhança corria atônita
para prestigiar o espetáculo horrendo... Meus colegas choravam, imaginando-se
churrasquinhos por pouco e finalmente tive a ação de juntar água num balde e
lançar às chamas, que, com a ajuda de alguns vizinhos, cessaram-se.
Apagado o fogo, não
restara eletricidade ou móveis no ambiente... Mas, minha fome permanecia.
Então, entrei na cozinha acinzentada, abri a geladeira queimada e retirei de
dentro dela uma garrafa de água ainda gelada, garrafa esta indiferente aos
acontecimentos externos, pois não se deixara levar pelo calor da emoção. Com a determinação
daquela garrafa, fiz uma limonada, sentei-me na calçada e fui terminar de
almoçar... Não ia perder um pratão daqueles de comida... sabe-se lá quando eu
iria comer novamente...
Quanto à Beninha...
ninguém mais a avistou. O dono da casa anda a sua procura, louco da vida com os
prejuízos causados... Uns dizem que voltou para a casa dos pais... Outros que
se converteu e foi pras missões... E outros ainda que, a exemplo daquelas
chamas, aguarda resolutamente o pré-juízo final.
08/07/2016 – 23h51 min.
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