quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

UMA HISTÓRIA DE CORNO - Luiz Berto


Eu conheci Marco Aurélio quando ele ainda estava de
porre, curtindo a imensa desgraça que foram os chifres bem
enterrados na testa pela esposa infiel.
Jururu, num canto de sala com o copo não mão, ele foi−
me apresentado pelo irmão e veio logo puxando conversa:
− Menino, eu tenho um negócio pra te contar. Tu me
parece gente boa...
Foi bruscamente interrompido pelo irmão:
− Fica quieto! Tu tem que sair contando isso pra todo o
mundo, é?
No que replicou de pronto, com a cara mais lavada do
mundo:
− Que é que tem? O corno sou eu e eu conto pra quem
bem entender...
E desfiou a história da traição da mulher, sua fuga com o
"pé−de−urso" num carro alugado em direção à praia.
− E eu sou um corno tão besta que ainda paguei a corrida.
A mulher mandou o motorista cobrar de mim. É peia, né não?
Professor de Literatura, alma sensível, cativante à primeira
vista, Marco Aurélio era chegado a uma glosa. Tão chegado,
que fez uns versos gozando os próprios chifres. Transcrevo do
jeito que ele me passou:

Por ser assim desleixado
Vivia bebericando
De lado as coisas deixando
Sem querer tomar cuidado
Eu era bem muito amado
No amor eu era assim
Mas o que sobrou pra mim
Eu nem quero fazer conta:
Foi ‘ponta" por sobre "ponta"
No amor fui muito ruim.

Por mais décima que eu faça
Por mais bebida que eu beba
Por mais bonito que eu seja
Por mais que gostem de mim
Por mais que eu faça assim
Relembro a minha desdita
De me casar com a maldita
Sem amor e sem afim
Por mais que eu goste da vida
No amor fui muito ruim.

Arranjei um querubim
Nesta vida passageira
Que me foi tão traiçoeira
Mas ela nasceu assim
Para mim foi estopim
Para mim foi a desgraça
Me deixou até sem calça
Por um tipinho assim
Que mesmo assim nesta graça
No amor fui muito ruim.

Marcante ausência, Marco Aurélio já não me escreve há um bom tempo. 
Perdemos o contato nas curvas deste oco de mundo.
Guardo viva na lembrança sua cara de surpresa, rematando a 
história dos chifres:
− Depois que todo mundo sabia de minha história em
Palmares, resolvi pedir transferência do Banco para outra cidade. Escolhi 
Paulista, perto de Recife. Aqui, não dava mais.
Aí, fiz um requerimento e, onde era pra escrever "motivo", eu
botei lá: "problemas em decorrência de infidelidade conjugal".
Quando cheguei em Paulista, pensando que ninguém me
conhecia, já tava todo mundo esperando "o corno de Palmares".
Agora, me diga: é ou não de lascar o cano?



Um comentário:

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