Agosto. Tarde de uma quinta-feira. Saio de mais um programa Verso e Companhia na Rádio Comunitária Santa Rita. Vencidos uns 50 metros, já estou diante da casa de Anchieta e de Bebezinha. Recuo no tempo. O veículo da memória me transporta para mais de 12 anos atrás, quando tomei a direção do bairro Barro Vermelho, para verificar “in loco” a excepcional coleção de latinhas de cerveja de Anchieta. Naquela ocasião, iniciava uma série de matérias para o Jornal Memorial Santacruzense, dando destaque aos colecionadores de nossa cidade, suas manias, riquezas e peculiaridades de suas respectivas coleções. Das coleções que pude descobrir e retratar, a de Anchieta foi uma das que mais me impressionou, não só pela quantidade e variedade de formatos, de estampas e de origens do objeto colecionado, provenientes que são de vários países do mundo, mas também pelo seu acurado senso de organização.
Qual não é a minha surpresa ao constatar, nesse retorno, que a mania de colecionar de Anchieta multiplicou-se com o passar dos anos e que ele acabou por converter-se num inveterado colecionador de coleções. Ali está, cuidando com zelo paternal, a realização de um universo singular carregado com as marcas e impressões digitais do próprio tempo; um lugar batizado de Área de Lazer Cícero Dantas – ACDL, numa carinhosa homenagem de Anchieta à memória de seu pai. Tão forte é ligação de Anchieta com este ambiente de reminiscências, que ouvi dele, a seguinte frase: “Eu tenho mais ciúmes das coisas deste espaço do que de minha esposa Bebezinha”, frase dita em tom de brincadeira, claro, mas que revela o quanto a “ACDL” significa para este botafoguense apaixonado.
Entramos na sala de estar de sua casa, no lado oposto ao de sua exuberante coleção de cervejas, mais de uma dezena de fotos antigas perfilam-se desvelando em preto e branco nuances de uma Santa Cruz provinciana, cativante e em franco processo de transformação (construção-demolição), como é possível perceber nas imagens que mostram os dois coretos, a procissão de São Cristóvão e a reforma que deu origem à monumental arquitetura da igreja matriz. Passamos ao terraço. Meus olhos rubro-negros contemplam atônitos, uma de suas grandes paixões e me impressiona a onipresença da estrela, nada solitária, que brilha em coleção de chaveiros, flâmulas, painéis e depósitos espalhados em toda parte.
Um espaço não muito grande e contíguo ao terraço abriga, já com algumas dificuldades, a maior parte de seu riquíssimo acervo. Numa mesa, vejo ao lado de uma interessante coleção de caixinhas de fósforo, uma carteira de cigarro de marca Plaza que me remeteu instantaneamente aos meus tempos de menino jogador de biloca, colecionando “contos” na rua Maria das Dores. Mas a razão de sua presença ali tem uma justificativa muito mais especial, pois simboliza uma tomada de decisão, quando seu pai, Cícero Dantas, depois de anos e anos como fumante contumaz, num belo dia disse para Anchieta: “Está aí e daqui por diante eu não fumo mais”; o filho, tocado pelo gesto, guardou a sua prova material, e dentro dela, ainda restam três ou quatro cigarros como testemunhas desta irrevogável e resoluta decisão.
Sigo curioso, buscando entre centenas de objetos, referências de meu próprio tempo e eis que me deparo com duas relíquias musicais, dois Compact Disc com as capas preservadas e estampando numa o jogador Júnior com sua cabeleira Black Power e vestido com a nossa inesquecível canarinho de 1982; e na outra, Fagner e Zico abraçados. Estes dois craques do Flamengo em pleno templo alvinegro me deixaram ainda mais ambientado. Vou seguindo. Vejo punhais, máquinas de cortar cabelo, uma coleção de cédulas antigas, um espelhinho de bolso com a foto do Major Theodorico Bezerra espelhando seu marketing pessoal; um microfone de pedestal dos tempos de Monsenhor Emerson; e não é que nesse espaço multitudinário de artefatos e lembranças, também me vejo entre outros conterrâneos na coleção de livros de autores locais. Anchieta guarda ainda exemplares de jornais como O badalo, O Trairi e o meu querido Memorial Santacruzense. Literalmente tocante é a coleção de CD´s dos nossos artistas Joca Borges, Dedé dos Teclados, Aurino Galvão, Gutembergue, Hugo Tavares e muitos outros. Tudo transpira e exala a história de nossa terra, de nossa gente. Máquinas registradoras, um rolo de papel de embrulho com o logotipo da Farmácia de Ferreira; e entre aparelhos antigos de TV e Rádio, aquele que deve ter sido um dos primeiros vídeos-cassetes do nosso estado. Numa das estantes, várias máquinas fotográficas e a tristeza de Anchieta por não ter ali, o famoso lambe-lambe de Manoel da Viúva. Destaco ainda uma roleta antiga de jogo do bicho, pintada por Dona Benedita, mãe de Zé do Ouro, especialmente confeccionada para uma das bancas de jogos de azar do saudoso Zé Galego.
Há bem mais do que pude descrever deste acervo extraordinário de coleções, tão bem catalogado por seu mantenedor, e que já requer espaços maiores para sua melhor acomodação e preservação. Faço votos, Anchieta, que esse verdadeiro templo da memória de Santa Cruz, a exemplo do Museu Auta Pinheiro Bezerra, tenha a visibilidade que merece e possibilite a muita gente o mergulho histórico que eu pude viver nestes breves instantes de contemplação. Sinto apenas, não ter sido suficiente esta tentativa de dar a justa ideia da riqueza do seu lugar estrelado, onde não se bota fogo na memória, bem ao contrário, pois a memória é a chama que você não deixa se apagar. Parabéns!
Com sua permissão, Marcos, acrescentei uma foto. Ilustra bem a ideia de estrelado.
ResponderExcluirExcelente crônica!
Recentemente estive no Fórum, falei com Anchieta sobre o blog, sobre poesia. Nem de longe me passou pela mente que ele pudesse ter tantas coleções! Magnífico!
Parabéns, Marcos, parabéns, Anchieta!
Impressionante !!!Parabens para o coleccionador ,estou admirativa .
ResponderExcluirParabens Marquinho pelo texto mais uma vez interessante .
Gilberto, está aí uma excelente entrevista a ser feita. Marquinhos, parabéns por compartilhar conosco essa magnífica experiência.
ResponderExcluirCristiane Praxedes Nóbrega
Valeu, Mestre Marcos. Anchieta é um dos meus incentivadores. Ele se emociona quando escrevo alguma crônica que remonta ao passado de Santa cruz. "... cara, você pegou pesado, pegou pesado, fiquei emocionado", é o que dele ouço no dia seguinte lá Fórum, nosso local de trabalho. Tenho dito a ele que essa sua coleção é dgna de uma grande exposição. " Vamos ver, vamos ver", diz ele!
ResponderExcluirEm todo o mundo,os grandes acervos, quer sejam particulares ou não, iniciaram-se, em sua maioria, por pequenas coleções particulares.É admirável a perseverança de sr.Anchieta, e o texto bem escrito de Marcos Cavalcanti. Parabéns a ambos !
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