domingo, 23 de setembro de 2012

Dá licença, meu branco! (Reflexão sobre o poema de Bandeira)


Irene no Céu (Manuel Bandeira)

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

origem da foto: alinegouveamello.blogspot.com.br

 (Ronald Augusto)


Irene preta, Irene boa. Irene sempre de bom humor. Quem quer ver Irene rir o riso eterno de sua caveira? Parece que só mesmo no espaço sacrossanto da morte, onde deparamos a vida eterna, está permitido ao negro não pedir licença para fazer o que quer que seja. Não se pode afirmar, mas talvez Manuel Bandeira tenha tentado um desfecho ambíguo para o seu poema: essa anedota malandramente lírica oscila entre “humor negro” e humorde branco, o que, afinal de contas, representa a mesma coisa. No além-túmulo – e só mesmo aí –, não nos será cobrado mais nada. Promessa de tolerânciaad eternum, e sem margens, feita por um santo branco, esse constante leão de chácara do mais alto que lança a derradeira ou a inaugural luz de entendimento sobre a testa da provecta mucama. Menos alforriada que purificada pela morte, Irene está livre de sua “vida de negro”, mas, desgraçadamente, só ela dá mostras de não ter assimilado isso ainda; quando a esmola é demais o cristão fica ressabiado. Na passagem desta para melhor não temos à mão uma borracha que apague os arquivos do vivido. Quem sabe a ideia lhe pareça intolerável. Ao fim e ao cabo, continua negra, ou seja, naïf, burrinha; as luzes do seu espírito não são intensas a ponto de isentá-la da pecha de “faísca atrasada”. Irene ainda persiste, para a frustração do estafeta do juízo final, como uma negra da alma negra.


Um comentário:

  1. Excelente, meu caro Gil! É, ao meu ver, uma forma de racismo sim, mesmo sem a intençaõ do autor. Mas aí não temos o direito de ajuizarmos uma ação de racismo contra o grande Bandeira, pois a arte dispõe de muitas licenças, dentre elas, a poética. Além do mais, Deus o perdoa, pois ele não sabe (o racismo) o que faz. E repito, o bom professor tira de letra o racismo presente em muitas nas obras de arte do início do século XX. Um abraço!

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