Machado escreveu em 1873:
[...]
Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se
escreve, raríssima peça nacional se representa. As cenas teatrais
desse país viveram sempre de traduções, o que não quer dizer que
não admitissem alguma obra nacional quando apareciam. Hoje, que o
gosto público tocou o último grau da decadência e perversão,
nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação para compor
obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que domina é a
cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica aparatosa, tudo que
fala aos sentidos e aos instintos inferiores?
O
trecho é parte do ensaio
NOTÍCIA DA ATUAL LITERATURA BRASILEIRA INSTINTO DE NACIONALIDADE. Como um todo, bem ilustraria o que se dá nos dias de hoje e nos conduziria
à convicção de que, como dizia Salomão, nada há de novo debaixo
do sol. Ele lamentava, por exemplo, que os clássicos nesse tempo
fossem pouco lidos e conhecidos. Machado, hoje um clássico - autor
de um romance que figura na lista dos cem melhores da literatura
universal - certamente ficaria assustado caso pudesse saber que a
realidade não mudou praticamente nada de 1873 para cá.
Se o autor de Ressurreição porventura ressurgisse, provavelmente seria glamourosamente conduzido
à ABL - academia que o tem como patrono. Ali, teria a chance de
conhecer ilustres imortais que lhe entregariam exemplares de obras autografadas. Imagino-o folheando Marimbondos
de Fogo, da autoria do
contista, ensaísta, poeta e romancista José Sarney (conhecido em
todo o Brasil não por dotes literários, mas por outros motivos), de
quem receberia convite para ir à tribuna do Congresso. Tal livro
seria devorado com o maior interesse; Machado pensaria: “Se foi
imortalizado tendo escrito tão pouco, deve ser um escritor
fantástico!” Mal acabaria sua decepção com aquele que é capaz
de qualquer coisa, (até mesmo de ocupar a cadeira de Tobias Barreto
na ABL), teria que ver obras gentilmente ofertadas (ou vendidas,
graças a alguma virtude desenvolvida no caminho de Santiago) por
Paulo Coelho e talvez como Verônika ele decidisse morrer. Ficaria
surpreso com o sucesso estrondoso de O Alquimista que vendeu mais
em décadas que Machado em séculos. Com Santiago, o
protagonista, Machado empreenderia viagem em busca do tesouro
literário escondido na obra-prima magra do mago. Iria, certamente,
arrepiar-se com deslizes linguísticos difíceis de perdoar e, por
fim, à semelhança do que ocorre com o personagem central,
descobriria que onde julgava haver algo áureo não há tesouro
algum; deveria retornar às obras de seu tempo onde, finalmente,
encontraria algo satisfatório. Ao ler Drummond, Quintana e Veríssimo, se surpreenderia ao
saber que estes nunca tenham sido imortalizados. Ao conferir o
estatuto da academia, para ver se as regras haviam mudado, veria que
ali ainda consta o requisito “ter
publicado, em qualquer gênero da Literatura, obras de reconhecido
mérito e valor literário”.
Depois
de animada conversa com o imortal senador Marco Maciel, autor de
obras memoráveis por mim ignoradas e de breve passeio com Ivo
Pitanguy (feito imortal não pelo que fez com a caneta, mas com o
bisturi), talvez Machado tivesse um surto de zelo naquele tão
profanado templo da cultura, semelhante àquele que levou Cristo a
se munir de chicote e sair derrubando tudo e expulsando gente. Não
sei se ele permaneceria com vida ao saber da medalha que Ronaldinho
Gaúcho recebeu devido, talvez, às muitas bolas e camisetas que
autografou.
No
trecho inicialmente citado, uma parte merece destaque:
“Hoje,
que o gosto público tocou o último grau da decadência e
perversão, nenhuma esperança teria quem se sentisse com vocação
para compor obras severas de arte. Quem lhas receberia, se o que
domina é a cantiga burlesca ou obscena, o cancã, a mágica
aparatosa, tudo que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?
Ora,
Machado, se vivesse hoje entenderia quão enganado estava ao pensar
que em seu tempo o gosto público chegara ao ápice da degradação.
Imagine se assistisse um pouco do Big Brother, dramalhão
supostamente improvisado que se nega a assumir seu caráter de
espetáculo (pois tenta passar por representação fiel da
realidade), sórdido drama protagonizado por maus atores e atrizes,
cheios nos músculos e nádegas, vazios nas mentes. Veria que estes
mamulengos da mídia, um milhão de vezes mais que os aproveitadores
de sua época, estariam a levar a população ao último grau de
decadência e perversão. Além disso, ao ouvir Michel Teló e saber
por um transeunte metido a engraçado que este tem sido escutado por
todos, menos por Luíza que está no Canadá, talvez concluísse que
as cantigas burlescas de seu tempo eram, na verdade, obras primas da
música universal comparadas a estas que escapariam dos paredões
de som (tão em moda atualmente) e feririam seus tímpanos.
Enfim, diante do que veria nas novelas, no Big Brother,
filmes, livros, músicas e espetáculos teatrais de nosso tempo,
Machado concluiria que nunca na história desse país (saudoso
Lula...) tanto se falou aos sentidos e aos instintos inferiores. A
que conclusão além desta poderia chegar o magno escritor
comparando a nudez e perversão sexual de hoje com os braços à
mostra que lhe renderam uma crônica? O ser humano, veria ele, em
qualquer época, tende mais a dar vazão ao lado animal,
mesmo que isso atente contra o progresso intelectual.
Assustado com o que veria, desejaria retornar à tumba. “Hoje sim”, concluiria, “o gosto público
tocou o último grau da decadência e da perversão”; hoje poderia
reescrever o NOTÍCIA DA ATUAL LITERATURA BRASILEIRA mudando apenas as datas. Todavia, diante do que vemos,
o texto pareceria demasiado brando. Machado esquentaria um
pouco mais os neurônios ao tentar falar das
imbecilidades de nosso tempo.
Machado talvez levasse uma única boa lembrança da nossa atualidade: a APOESC. Fico imaginando Machado lendo um Gilberto Cardoso, um Hélio Crisanto, um Teixeirinha, um Adriano Bezerra, um Maciel, um João, um Marcos Cavalcanti, um Zenóbio, um Marcelo, uma Lindonete e tantos outros que desfilam suas artes por aqui. Seu texto é simplesmente fantástico, real e assustador! Parabéns!
ResponderExcluirOU CABA BOM...BOM NA LITERATURA E NA INTELIGÊNCIA. EU QUEROOOOOOOOO TER UM FILHO DESSE. RSRS MAS,É BOM MESMO!
ResponderExcluirConcordo grande Nailson! Porém, faltou seu nome e sei pq vc não revela por humildade. Mas,todos vcs são excelentes e os admiro muito...deveriam escrever mais,muito mais.
ResponderExcluirGrande texto,mestre Gilberto!
Parabéns a APOESC por todos esses artistas e poetas.
João
Texto de fôlego, Gilberto!
ResponderExcluirParabéns!
Obrigado, João,Teixeirinha e anônimos pelo grande estímulo.
ResponderExcluirNailson, de modo algum voê deveria estar fora deta lista. Obrigado por seus incentivos! Nossa entidade certamente agradece!
É VERDADE GILBERTO. HAJA NEURÔNIOS PARA MACHADO DE ASSIS,JÁ QUE TEMOS UM MUNDO CONTURBADO.
ResponderExcluirPAULO
Gilberto,como és conhecedor da literatura brasileira...certamente és formado em Letras. Conhece esses caras todos. Parabéns profº.
ResponderExcluirBacana ,Gilberto! Bom mesmo!É o tipo de texto que prende o leitor, fascinado do princípio ao fim.
ResponderExcluirObrigado, amigos, pelos comentários favoráveis.
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