sábado, 4 de fevereiro de 2012

SUSPIROS DE UMA ENXADA


POR EUCLIDES NETO*
Levanto-me com os rubis do sol encastoados nos confins das eras, e a devoção humilde nos tempos bíblicos. É chegada a hora de abrir a cova das sementes que morrem para nascer. Se o bisturi lanceta a carne e evita o fim; se a caneta escreve os poemas, os romances e as partituras; se o computador é o cérebro do homem, tudo não existiria se os feijoeiros não florissem. Sou a lâmina que rasga o músculo da terra e cria a vida.
Sofro primeiro o ferrão envenenado do terrível jararacuçu, quando o roceiro o puxa aos pés para sacudir a terra e separar a erva...
Mas, envelheço e viro um desprezível cacumbu. Os ouros e platinas antigas são cobiçadas pelos museus, enquanto fico largada à toa na roça-meu ultimo repouso. O madeiro que me completa apodrece. Meu trabalho é eterno.
Já vergada e sega, passam-me a lima ráspida ou me batem na face com a pedra rude. Sou o espelho da lua e do sol quando nascem.
Os eruditos me desprezam. Sempre os perdoei. inda mato-lhes a fome. Lavro todos o livros do mundo e não me alimento dos seus frutos.
Estou nos banquetes. Enfeito as jarras de cristal com as pétalas de richilieu que realças os faisões nas baixelas de prata. Em oferenda, levo os frutos da sobremesa. Plantei as jaqueiras centenárias. Até a champanha e licores que inebriam. Passam todos pelo beijo dos meus lábios. Levo alegria, gargalhadas, inspiração aos músicos e poetas.
Não me queixo do destino. Em verdade, em verdade vos digo: o pão do pobre e o da hóstia consagrada (que se transforma no corpo de Cristo) e a uva do vinho do seu sangue levam minhas lágrimas e suor.
Os poetas nunca me lavraram um canto. Rimam os passarinhos, as luas crescentes, as saudades, as flores, as dores, os albores e os amores. Mas sou símbolo do lavrador, que lavra a dor. Sou a palavra da terra.
Não chego a ser coroa cravejada de brilhantes. Nem aliança nupcial Nem adorno das rainhas. Nem medalha no peito dos heróis. Nem sobre o coração do Nobel da paz. Nem estatueta do Oscar. Nem pouso na vaidade dos comendadores. Em verdade vos digo: não vou de um caco de terra metido num pedaço de pau.
Não deixo o aroma de sândalo e mirra dos Reis Magos aos pés do menino. Em verdade vos digo: alimentei a família de José e Maria com o trigo que plantei. Meu perfume é o suor dos negros nos eitos.
Não planto as metralhadoras nas trincheiras. Planto a rosa, o jasmineiro, o manacá, a flor do feijoeiro. Não planto FOME. Carpi-la é o meu ofício. Não toco a música dos violeiros. Acompanho os acordes dos canarinhos- terra das amanhecenças. Não tenho os candelabros de ouro que iluminam os anfiteatros de veludo. O Sol e a Lua é que me enfeitam os salões verdes dos milharaes, e riscam partituras do chão.
Não vou esquiar Alpes gelados nos pés de princesas. Prefiro as mãos de rocha dos descalços. Não sirvo de brinquedos para os meninos dos palácios. Mas as criancinhas que mal começam a andar na roça pegam a enxadinha gasta da avó e saímos traquinando. E a avô ralha comovido: menininha, é cedo para a labuta, teu tempo chega.
A debutante não me leva aos bailes da corte. Mas a menina da fazenda, antes da primeira lua, me ama tanto que sua mamãe me esconde para não fugirmoa à horta sob a pureza das noites azuladas.
Quando virar uma lágrima de aço enferrujado, num canto da roça ou no oitão da casa de taipa, não quero que me sejam gratos – ó gente de pouca fé. Rogo que cantem uma oração para que eu possa adormecer em paz e voltar ao pó da madre, que tanto amei.
Alimento todos os homens: Santos, operários, reis generais, heróis, eruditos, criminosos no fundo das prisões, prostituta. E nunca pergunto quem vou alimentar.
* EUCLIDES NETO.
ESCRITOR, ADVOGADO E POLÍTICO,
NOS DEIXOU IMPORTANTES LEGADOS
COMO ESTA OBRA PRIMA, SUSPIROS
DE UMA ENXADA

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