segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Duas horas na favela (por Zenóbio Oliveira)

"Mando um texto retratando minhas vivências de cinegrafista.
Um Abraço amigo" - Zenóbio


O aglomerado de barracos causa confusão nas vistas de qualquer um que pregue os olhos nesse quadro de promiscuidade. Na ruela de entrada, um botequim de construção informe, duas mesas dispostas na latada, uma sinuca, três ou quatro sujeitos nus da cintura pra cima e uma placa de lata pendurada numa corda de sisal com o letreiro “BAR DO FRAMENGO”.
As construções mal distribuídas formam becos estreitos e enviesados, dando a impressão de labirintos. Pra não se arear é preciso levantar a cabeça de vez em quando e nortear-se pelos arranha-céus que se levantam no oeste da cidade. Até dá pra ver o contraste absurdo que a desigualdade sustenta. Favela adentro, enxerga-se outros absurdos desse mundo pós moderno. Crianças amamentando outras crianças, filhas suas, meninos descalços brincando com suas roladeiras de latas de Neston no lamaçal da última chuvarada, adolescentes escabreados esquivando-se aos olhares curiosos e sumindo na dessimetria dos becos e um emaranhado de fios elétricos que convergem para a ponta de uma estaca de aroeira, convidando algum incauto para a morte.
Uma caminhada de mais ou menos dez minutos, observando aquela paisagem desajeitada até esbarrar em Dona Maizé, encostada num colchete de arame farpado fazendo as vezes de portão.
Dona Maizé mora no centro da favela, num casinholo de taipa, lona, tábuas e folhas de zinco enferrujadas. Uma pequena cerca de vara de marmeleiro lhe serve de muro e no quintal de duas braças ela cultiva um jardim de rosas, flores nove horas e crótons trinta rapaz em jarros de panelas. No sopé da parede de barro encharcada, uma porca macérrima ajeita a cama, algumas galinhas pinicam sacolas de lixo empilhadas no batente da porta, onde um cachorro lazarento dorme esticado na preguiça. Na sala, uma cadeira de balanço com fitilhos quebrados e dois tamboretes de perereiro. Num canto, uma caixa de fogão a gás, coberta com um pano curto, que o denuncia, e sobre ela um rádio-relógio, made in China, e no outro, um pote tampado com um prato branco de ágata, que também serve de copeira para dois canecos de alumínio. Na parede, um Sagrado Coração de Jesus alumiado pela claridade que vem da porta e o retrato ampliado e emoldurado de Dona Maizé e do finado Mundinho, companheiro por trinta e cinco anos. No quarto, apenas uma rede enganchada num armador de pau branco enfincado no barro. Na cozinha, uma cristaleira abastecida com meia dúzia de pratos e um sem número de copos de extrato de tomate. Na porta do móvel, a fotografia amarelada de Joquinha, filho morto aos quatorze anos, numa briga de rua, pode ser vista presa entre o vidro e a madeira e, pregado logo abaixo, um adesivo, não menos amarelo, onde se lê: O dinheiro não traz felicidade.

Um comentário:

  1. Amei este texto lindo . Reflexo de alguém que sabe observar e retransmitir com sensibilidade!!! Parabens Zenobio !!!

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