RECONHECENDO A PATERNIDADE

 RECONHECENDO A PATERNIDADE

A mulher está cozinhando e pensando na sua vida de proletária. Lava uma panela, sacode as mãos na pia e corta tomates lembrando-se do filho que deixou dormindo na companhia do cão. Seu marido deve ainda estar na farra e só volta para casa quando acabar o dinheiro. 

Um punhado de verdura é colocada numa vasilha e ela pensa em pedir o divórcio. Vai ser melhor aproveitar enquanto é nova para arranjar um homem mais responsável. Do jeito que está indo vai ter que lhe sustentar quando ele for demitido. 

Com um pano de prato no ombro, abre o saco de coentro e depois coloca o resto na geladeira com os olhos cheios de lágrimas. Acha que está com os nervos à flor da pele por ter parado de tomar o remédio que o psiquiatra passou. Queria ver se tinha sido curada, mas percebe que tem que continuar o tratamento medicamentoso e voltar para a psicóloga. 

Há uma lixeirinha embutida que ela abriu para jogar o resto do que sobrou. Depois que sua mãe faleceu, ela perdeu a alegria de viver e o médico disse que ela não havia vivenciado o luto, por isso a necessidade de remédios e terapia. 

Abre a geladeira e come uma sobremesa deliciosa que veio de longe. Só um pedacinho para não abusar da boa vontade da patroa. Acredita que amanheceu chorosa porque assistiu a uma animação onde um bebê nasce e vai crescendo até aparecer um gráfico indicando parada do coração quando ela já está bem velhinha, do mesmo jeito do vídeo que fizeram quando sua mãe estava morrendo.

Descasca as cebolas enquanto compara sua vida com a da patroa. Queria ser igual a ela. Poder trabalhar em algo que ganhasse bem mais, que pudesse passear todo final de semestre com o filho, colocá-lo para estudar numa escola boa, quem sabe, ter uma empregada para fazer o grosso por ela. 

Mexe a panela, experimenta e coloca um pouco de sal. Adora cozinhar, mas só isso não basta. Precisa de mais dinheiro e conforto. Um carro para se deslocar, porém já fez as contas e naquela profissão sabe que não vai conseguir o que almeja.  

Mais uma vez lava as mãos. Está fazendo sopa para congelar. Acha que vai se inscrever naqueles concursos de culinária, no entanto não tem roupa adequado e nem com quem deixar a criança. Dizem que mandam o dinheiro da passagem. 

Mexe a panela e coloca o que havia cortado num prato. Acende uma outra boca do fogão com uma frigideira em cima. Em pleno domingo tem que trabalhar. Na frigideira passa ovos com carne. Está com fome, contudo a patroa já liberou que ela pode comer o que quiser. Vem trabalhar mais por causa da comida para que sobre para o filho de dez anos. Ele é uma benção. É doido para ir vender doces no semáforo, no entanto ela tem medo de deixar. Tem muita gente ruim nesse mundo, e ela só tem ele, já que com o marido  há tempo que deixou de contar. 

Carne moída com ovos e pão ela segura com as duas mãos vigiando o fogo. Mastiga com gosto do bom tempero. Sabe que se contar que o marido da patroa tentou mais uma vez... perde o emprego. Aproveita para lavar a louça enquanto espera a hora de tirar as panelas do fogo. Se ele quisesse lhe assumir com uma mesada, até que ela aceitaria. O marido bêbado já não chega junto e ela precisa de carinho. 

Enxuga a louça e guarda nos seus devidos lugares. Depois que ele deu em cima dela, procura vir com roupas mais compostas, folgadas para não lhe atentar. Deve ser as antigas lembranças que o fez se aproximar. 

Mexe a panela mais uma vez, coloca arroz, água e outros temperos tampando por mais quinze minutos registrado no alarme do celular. Acha que o seu  marido tem vergonha pelo filho ser meio diferente dele, só pode ser isso que o fez ausente de casa de uns anos para cá. Depois que foi chamado na delegacia por maus-tratos, ele começou a beber.

Tira um pouco da sopa e degusta. Humm, ficou ótima, diz para si mesma desligando o fogo. Volta para casa depois do dever cumprido satisfeita por ter ganhado o tão almejado presente de matricular o filho no colégio do patrão. 

Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 19.11.2023 - 13h29min.