segunda-feira, 20 de novembro de 2023

NA POEIRA POR UM SONHO

 


NA POEIRA POR UM SONHO 


Um saco de cimento dá. Misturou com mais três tantos de areia e começou o traço. Na hora de colocar água, o balde furado molhando suas botas e calças o fez refletir: será que vou passar minha vida inteira fazendo isso? Quando terminar pode trazer logo que já estou esperando. O pedreiro saiu junto com o dono do serviço que pediu pressa ao servente acostumado a ser mandado. Ele anuiu com a cabeça, sem olhar para os dois, e continuou insatisfeito pensando na frase que diz que o trabalho dignifica o homem. 

Com a massa pronta, foi pegar a pá que estava escorada no tanque d'água e aproveitou para molhar o cabelo e penteá-lo se baseando num espelho de bolso. Quando sair daqui, vou fazer um jogo na lotérica. Se ganhar, compro logo aquele prédio ali na frente. 

As duas moças, que passaram olhando para o cofrinho dele, começaram a rir. Compro também uma casa para as duas e boto elas lá só para vê-las sorrir. Colocou a massa na lata. Matriculo as duas numa academia, compro motos e vassouras para cada uma e vou passar o dia vendo-as varrer e achar engraçado me servir.  

Pegou a lata cheia de massa, com quase vinte quilos, suspendeu no ombro e levou para o pedreiro. Vamos ver se vai mais depressa!  O patrão ali disse que eu procurasse outro servente se você não for bom no serviço. Ficou calado pensando em mandar prender o pedreiro e o dono da obra se tirasse na loteria. 

Bote o capacete e as luvas, disse o proprietário com medo de ter que indenizá-lo caso houvesse um acidente. Vou mandar prendê-lo com capacete e luvas para ver se é bom ficar no calor com esse material piorando, pensou enquanto dizia tudo bem e gosto de trabalhar num canto que tem todos os EPI disponíveis. A segurança em primeiro lugar, enfatizou vendo a hora perder o dinheiro certo de jogar todo dia. 

Vá buscar mais, disse o pedreiro não suportando vê-lo sentado no andaime. Vou agora mesmo meu patrão, disse saindo do quarto que estava sendo feito e, longe da vista deles, dando um chute na parede e outro no pneu do carrinho. 

Aguou a massa, mais algumas traçadas com a enxada e levou novamente aquele peso pensando em se matar. Não vale a pena deixar de apostar. Descarregou o cimento diretamente no chão, e quando foi acender um cigarro... vá buscar mais. Ao se lembrar que ficou com os dedos dos pés doendo na última vez que meteu o chute, preferiu soltar um palavrão traduzido em estou indo. Aqui é uma máquina com o nome trabalho. Vou aqui ao banheiro. Homem deixe para quando terminar o traço. Estou apertado. 

Entrou no banheiro acendendo o cigarro. Aqui posso fumar sossegado. Cadê o servente?, escutou o homem perguntar ao pedreiro. No banheiro! Não estou pagando para você ficar aí fingindo, disse o dono batendo com mais força na porta. Que velho sacana!  Já percebeu minha manha. Já acabei! Estava apertado mesmo! Abriu a porta assoprando para despistar. Comi uma rabada ontem quando fui dormir, e desde de madrugada que estou me acabando. Eu vou descontar vinte minutos da sua diária. Eu passo do horário, não tem problema. Pegou correndo mais uma lata de massa e a partir daí endureceu no serviço, até a hora do almoço. Na folga do meio-dia foi fumar, entrou na internet e pegou no sono sendo acordado aos berros pelo pedreiro. 

Pulou assustado do vaso sanitário e tentou manter o ritmo apressado de fornecer tudo que o chefe pedia. Ansioso pela hora de ir apostar, só foi liberado meia hora depois quando a casa lotérica já havia fechado. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.11.2023 - 17h11min.



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