quinta-feira, 22 de junho de 2023

MOVIMENTO UNIFORMEMENTE ACELERADO

 


MOVIMENTO UNIFORMEMENTE ACELERADO


Levanta-se da cadeira e pula do trigésimo andar. Ao passar pelo vigésimo nono vê uma mulher fazendo tricô. Ela está grávida de oito meses com um vestido largo e o rosto inchado. Nem se dá conta que ali naquele momento alguém passa em processo de suicídio. O marido chega do trabalho e a beija avistando uma sombra passando pela porta da varanda. 

Será o primeiro filho do casal, por isso estão ansiosos para dar-lhe uma vida confortável que nunca tiveram. O que você quer jantar?, ela pergunta deixando a linha e agulha dentro de um saco plástico levantando-se para preparar as batatas fritas que ele tanto gosta. Um suco verde acompanha as batatas e um pouco de conversa sobre seu dia no escritório de advocacia une o casal.

No vigésimo oitavo, uma jovem estuda pensando nos testes que irá fazer amanhã. Está tão concentrada nas questões de matemática que nem repara o homem que pulou há pouco. Ela está inquieta com vontade de ser possuída pelo namorado que naquele momento está fazendo amor com sua melhor amiga. Ela imagina a família que pretende construir, suas viagens por terras distantes e sua vida desgraçada com acnes no rosto de tanto esforço e sem lazer. Ultimamente vive trancada naquele apartamento tentando provar aos pais que também será capaz de ser bem-sucedida. Ele também tentou o mesmo que a jovem, porém diante da pressão decidiu acabar com o sofrimento apelando para o pulo. 

Um andar abaixo o rapaz enxerga uma unidade vazia. Os donos estão viajando em lua de mel pelo mediterrâneo a bordo de um navio de cruzeiro. Felizes da vida assistem a um espetáculo no teatro contentes por terem dado uma pausa nas suas vidas medíocres. Ela sente uma ardência entre as pernas de tanto sacrifício sucessivo, porém satisfeita por se sentir mulher possuída e desejada por aquele homem que a trata igual princesa. Seus desejos reprimidos afloraram naquelas águas internacionais deixando tonta de tanto prazer, coisa que o pretenso defunto sempre fora reprimido por uma mãe religiosa que enfatizava existir pecado carnal antes do casamento. 

Crianças brincam na sala do vigésimo sexto andar. Um deles percebe algo passando e acha que é um urubu em voo rasteiro. Tem um susto e nem vai ver de que se trata. Continua entretido junto com seus dois outros irmãos menores e jamais pensaria que alguém estaria usando o seu livre-arbítrio para apressar o que já estava previsto. O garoto está um pouco entediado pela diferença de idade, porém aceita sem questionar a ordem de continuar brincando com os outros enquanto sua mãe foi fazer compras, seu pai está no trabalho e a empregada no celular passando e recebendo mensagens dos vários namorados que possui, inclusive aguarda que aquele que pulou, ela nem desconfia, dê um sinal de que ela pode subir para dar uma rapidinha. 

O homem que desce apressado pelo ar nem nota que no vigésimo quinto um cão o observa. Aquele cachorro está na varanda olhando o movimento dos veículos lá embaixo e presencia aquela arrumação sem que possamos saber o que se passa na cabeça daquele animal. Ele foi comprado recentemente e ainda está em fase de adaptação naquele cubículo de oitenta metros quadrados. Seus donos o deixaram trancado e saíram para o cinema sem esquecer ração e água em abundância que acham que só isso é necessário para que o cão se sinta feliz. O homem que pulou tinha tudo, só que, igual ao cão, estava se sentindo sozinho.

24º andar – parabéns pra você... convidados comemoram o aniversário do dono da casa que chegou aos quarenta anos. Doces, salgados e sorrisos de praxe inundam aquela mesa farta. Apenas pessoas da família estão sendo registrados na foto no exato momento que surge um vulto lá fora voando. Uma comemoração simples, mas que poderia ter salvado o homem que nunca teve sua data natalícia lembrada depois que os pais vieram a falecer. Quem sabe, se ele tivesse tido mais um pouco de atenção não estaria descendo para ter seu corpo estourado pela pressão da força da gravidade. 

A pessoa que estava instalando as cortinas no vigésimo terceiro andar nem se deu conta do que estava acontecendo. Entretido com seus afazeres, suava por estar há pouco mais de uma hora tentando concluir o trabalho. Seu pensamento estava estacionando no pagamento que iria receber. Parou um pouco para atender um outro cliente reclamando que havia dado defeito na armação que ele instalara. Depois eu passo aí, disse ele desligando o celular e achando a vida um saco, nem tanto quanto aquele que flutuava sem escapatória.

Quem viu e ficou olhando até o final foi o idoso do andar de baixo que estava assistindo um filme no notebook, e no momento das propagandas viu um homem com os olhos arregalados, quem sabe, já arrependido pela besteira que estava fazendo. Ficou paralisado pelo susto tendo seu grito abafado pelo som da guitarra da vizinha ensaiando os solos do show que faria à noite. 

O pedreiro cortando um porcelanato na varanda seguinte também não deu notícia do que estava acontecendo. Um bebê mamava sossegado no dezenove...

Ploft. O corpo espalhou pouco sangue. As pessoas pararam para ver, no entanto logo seguiram viagem para não atrapalhar o trânsito.

Sua mãe era aquela que estava com ele ainda na barriga fazendo tricô, e todos os vizinhos surgiram na regressão que ele estava vivenciando enquanto descia. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 21.06.2023 - 14h09min.



2 comentários:

  1. "MOVIMENTO UNIFORMEMENTE ACELERADO" provoca reflexão sobre a importância da empatia, da conexão humana e da atenção aos outros. Lembra-nos que, por trás das aparências comuns do cotidiano, podem existir histórias complexas e sentimentos profundos. - Uma boa trama. - Gilberto Cardoso dos Santos

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