UM DOMINGO DIFERENTE
Preparando-me para sair. Água e toalha na bagagem. Ontem desci com as malas dos bonecos e acomodei-as no porta-malas. Subi, pintei as portas que faltavam e fui dormir. Agora pela manhã, seis e pouco, já estou pronto para ir ao Parque das Dunas realizar o espetáculo sobre fissurados.
APAFIS é a associação que está me contratando. Vá ajeitar o cabelo, escutei ordens vindo da madame criticando os arrepiantes fios. E agora? Ah, ficou bom. Dez minutos para descer. Descendo no elevador. Não precisa se estressar. Eu só não me estresso se você ficar calmo, disse ela respondendo ao meu comando. Vou preparado para aceitar que o porteiro me impeça de entrar. Acho que eles fizeram um curso para ser tão incompetentes, comento enquanto me lembro das vezes que havia combinado e fui barrado.
Cheguei ao parque e fui decepcionado para cima. O porteiro era educado e me deixou entrar. Estou no palco arrumando a estrutura. Você tem a chave?, pergunta-me uma mulher chegando sorridente em minha direção. Não tenho. Conseguiu a chave do camarim e começou a varrer o palco. Vixe, já estou suada. Não vai ser aqui não, disse o contratante chegando e se disponibilizando a levar a troçada para um outro local menos central. Estava muito bom para ser verdade, comentei com João Redondo.
Tenho seis filhos, disse a varredora enquanto continuava a passar a vassoura. A minha supervisora é uma pessoa muito boa, humana e gosta do que faz. Também cuido de uma idosa com câncer de útero. Tem dia que descarrega toda a raiva das dores em mim. Disse também que sempre foi doida por comida e que tinha disposição para devorar uma caixa de chocolate sozinha. Parou um pouco a vassoura, passou a mão na testa e sorriu. É boa de risada.
O rapaz da TV veio buscar a outra mala. Saí com a tenda já armada no meio da pista de corrida. Se alguém dissesse que eu teria que fazer aquilo antes de me contratar, seria o triplo do valor do contrato, mas como foi um imprevisto, tive que fazer das tripas coração e sair sorrindo igual à varredora. Nada de miséria, pensei enquanto ia desfilando com aquela arrumação de fazer qualquer palhaço tarimbado de circo rir.
Lá no novo local já estava o pessoal do som e o quarteto esquentando a voz. Vai ser ali em cima. Tenho que dispensar a cobertura porque não cabe. Não, então faça aqui embaixo. Você deve fazer do jeito que deve ser, disse ele aberto ao diálogo.
Foi chegando o pessoal que já me conhecia de longas datas. Abraços e apertos de mãos foi em abundância. Falei com um cidadão de longe. Depois fui até ele. Você é baixista? Perguntei-lhe. Não! Rapaz, tem um baixista que assisto nas redes sociais que é a sua cara. Eu sou vereador aqui na capital. O mico foi absorvido pela simpatia dele e a minha alegria em ter errado. Adoro errar, por isso preciso viver correndo em busca dos acertos senão no final do dia os erros superam os acertos.
A professora, autora do livro sobre meu trabalho, chegou com o marido e a mãe idosa. E aí? Tudo bem. Seu marido foi convidado a apertar a mão do tecladista. A gente se confraterniza, disse o músico tirando o boné e mostrando a careca tanto quanto a do outro. Deve ter algum trauma, pensei.
Daqui a pouquinho show de mamulengos com Heraldo Lins, anunciei no bom som. A irmã do músico que esconde a careca debaixo do boné riu da minha voz achando bonita, oia! Pronto, ganhei o dia.
Durante o espetáculo, procurei o orelhão para colocá-lo em cena, que nada, havia esquecido em casa. Improvisei com o celular que criava vida a cada palavra dita. Muita estrada para saber improvisar e não perder o ritmo do espetáculo, pensei depois que terminei o serviço imaginando que se eu tivesse notado a sua falta antes daquele momento, não teria sido tão engraçado.
Uma coisa que me estressou foi a tampa do ventilador. No mesmo instante, tive a ideia de amarrar com nylon, deixe só chegar em casa, pensei sem demonstrar decepção com os objetos que vão se quebrando durante o espetáculo. Toda vez a revisão é feita antes e depois do show. Nunca vi uma coisa precisar de tanta manutenção quanto o teatro de bonecos. É uma pintura descascando, um elástico sem força, ferrugem na armação...
A professora ficou abismada com a articulação da boca dos bonecos. Heraldo é danado, enquanto ele não conseguiu colocá-los para abrir a boca, não sossegou, comentou ela com minha esposa. A sua filha veio dizer que tomou um susto quando o boneco olhou para ela e falou o texto. Parecia que havia ganhado vida. Esse depoimento me encheu de felicidade.
Comentei aqui em casa que quando se está longe desse trabalho a vida perde a graça. Parece que dependemos desses bonecos para ter acesso à classe artística de Natal.
Ex-colegas da universidade estavam presentes falando que foram à França fazer estágio em regência, etc. E o seu menino? Ah, sabe tudo sobre informática. Já fala inglês? Desde os dois anos de idade. Tive que dar-lhe um freio porque ele aprendeu primeiro inglês para depois começar a falar português, disse-me a fonoaudióloga cantora.
Vou levar você para o interior. Quando? Deixe-me ver e te ligo, disse o dono da TV depois da minha entrevista. Voltei para casa com uma caixa de CDs para doação. Na portaria, já deixei oito para os funcionários. São de música instrumental. Violão. Agora vou escutá-los. Com licença.
Heraldo Lins Marinho Dantas
Natal/RN, 28.05.2023 – 20h00mim.
Parabéns, Heraldo, por seu domingo diferente. Nada melhor e mais justo do que ser remunerado para fazer o que gosta. Imagino que tenham aplaudido com entusiasmo os seus gracejos, didatismo e habilidade com os bonecos. Não lamento pelos contratempos pois, graças a eles, ganhamos mais uma bem-humorada crônica. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirPois é, Poeta Gilberto. Como já dizia Ariano Suassuna: quando se passa por dificuldades todo mundo acha bom escutar.
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