quinta-feira, 9 de março de 2023


PERFEITO ESTADO MENTAL 


Depois de dar duas voltas na chave para o lado esquerdo, coloco a mão no trinco da porta. O que será que me aguarda hoje? Esse filme do meu futuro está prestes a começar, e isso demanda concentração fora do comum. Tudo pode acontecer do lado de lá, penso meio que apavorado. 


Puxo a porta achando que vou encontrar a vizinha com suas lamentações. O filho toma droga e ela quer que eu o aprisione. Não, hoje ela não está me esperando no corredor. Com “cuidado no barulho,” esgueiro-me para dentro do elevador. É uma eternidade o tempo que ele passa para se fechar. Começa a descer. Estou acompanhado pelos meus medos. Se despencar, serei apenas mais uma vítima da falta de manutenção. Duas mulheres negras entram, no dezoito. Uma delas está curvada recuperando-se de uma abdominoplastia. Ficam em silêncio e eu as imito. Tenho vontade de me meter na vida delas perguntando quanto tempo leva para total recuperação.


Uma loira, trajando roupa de ginástica, diz bom-dia. Respondo ao cumprimento levantando o olhar bobo para hospedá-lo na televisão afixada acima das nossas cabeças. Ainda bem que foi ela quem primeiro me cumprimentou. Se fosse eu, poderia ser interpretado como assédio. O único barulho que escuto, é o do meu coração inventando de acelerar com a presença da moça de olhos azuis. O que será que está pensando? Queria ser invisível para acompanhá-la no seu dia a dia.


A porta se abre e vejo um desrespeito às normas de que não se pode colocar vasos de plantas nas áreas comuns. Ninguém entra nem sai. Mais abaixo, as três me deixam ir sozinho para a garagem. Agora sim, os monstros que me perseguem devem dar as caras. Uma hiena sempre me espera entre os pneus dos outros veículos, mas hoje venho armado com o guarda-chuva pronto para espetá-la na goela. 


Nada. Só a penumbra característica de subsolos. Uma moto estacionada em frente a uma caminhonete, também caracterizada de preto, fazem-me lembrar que sou vizinho do Batman. Ele deve estar descansando da briga que travou ontem com o pinguim, também vizinho. 


Os dez passos que caminho até o meu carro são infinitos. A qualquer momento pode aparecer uma mulher querendo que eu pague a pensão do filho que ela teve com outro e diz ser meu, ou então o teto da garagem desabar, aí serei encontrado pelos bombeiros e enterrado como indigente.


É melhor entrar logo no carro. Às vezes sai uma anaconda do balde de lixo ali exposto, e hoje o cuidado deve ser redobrado porque sempre ela entra na briga com a hiena, e como essa última não compareceu, pode ser que eu seja o escolhido para o duelo. 


Travo as portas. Ufa! escapei mais uma vez. Todo cuidado é pouco na hora de ligar. Alguém deve ter colocado uma bomba embaixo do veículo. Se eu “virar a chave,” com certeza, vai tudo pelos ares. É melhor averiguar. Vou sair sem medo dos animais porque o horário deles já passou. Se não entraram em cena até agora, é porque foram dispensados. Aqui embaixo não tem bomba. Pode estar no porta-malas. É melhor abri-lo com o controle remoto. Faço isso por trás de uma pilastra. Aproximo-me. Acho que ela está no motor. O capô, vagarosamente, é aberto. Só o motor mesmo. É melhor ligar o carro de fora. A bomba deve estar embaixo do banco. Tudo bem. Nada de explosão. Vou saindo da garagem. O portão de saída não foi aberto pelo porteiro. Ele deve ter sido feito refém e agora os terroristas pedem uma cifra milionária para que seja acionado o dispositivo de saída. 


Por que tudo é difícil para mim?  Vejo as pessoas andando normalmente na rua e até sorrindo. Nem sabem elas, o quanto é difícil andar contando as "passadas." As pessoas atravessam a rua e nem param para ver se vem carro. Fazem o movimento lateralizado de cabeça sem ao menos diminuir o passo. Acho isso incrível. 


O portão está sendo aberto. Vou com cuidado para não atropelar o cego que sempre aparece na calçada. Acredito que esteja querendo ser cego e aleijado ao mesmo tempo, com duas aposentadorias, e eu ter que indenizá-lo por essa última “especialidade.”


Daqui um pouquinho, passam carros na contramão em alta velocidade. Já vi isso em muitos telejornais, e eu serei a famosa vítima da segunda edição. É, parece que hoje os sensacionalistas terão que irem para outra freguesia. 

O telefone toca. Deve ser o serviço secreto querendo me rastrear. Já sei!, o flanelinha é um dos agentes disfarçado de roupa suja. Na verdade, sua flanela é um sofisticado sistema se sinalização ligada diretamente ao satélite que me vigia vinte e quatro horas ininterruptas. 


Era só uma mensagem “spamnizada”. Ligo o alerta para a esquerda. Ainda bem que não vem carro, apenas uma manada de elefantes. Deixo os paquidermes passarem e vou atrás sujando os pneus com o rastro que deixam no asfalto. Pego um atalho que, de tão usado, já se transformou em estrada. 


Chego ao trabalho, meia hora adiantado. Fico dentro da minha pequena "furna motorizada" enquanto "chega a hora." É um perigo se apresentar antes do horário. Toda a estrutura está sendo usada para outros fins, e eu tenho que adentrar ao recinto só no momento em que já retiraram os torturados da sala. Ali jaz os restos mortais de Tiradentes, e não sou eu quem vai denunciar. 


Agora já consigo respirar aliviado. Sento-me à mesa para tomar meu desjejum, pois hoje é dia de folga e nada melhor do que ficar em casa manipulando o pensamento.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 09.03.2023 – 08h51min.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”