quinta-feira, 17 de outubro de 2024

RELENDO VELHAS INTERPRETAÇÕES

 


RELENDO VELHAS INTERPRETAÇÕES 


Olha para o fogão a lenha cheio de cinzas do jantar de ontem. Um frio percorre sua coluna ao pensar que terá a árdua tarefa de ir buscar mais lenha na mata escura. E se não for? Daqui a pouco vai chover, e a lenha dará mais trabalho para pegar fogo. Quão dependente ele é da temperatura. Aparentemente está inerte, mas suas células permanecem consumindo oxigênio, água e alimentos, e sua libido pede que se reproduza, transformando-o em escravo da tarefa de precisar de mais lenha para alimentar os seus.


Sente-se apegado à vidinha que leva e tem certeza de que é esse o sentimento que o mantém nas profundezas da prisão domiciliar. Poderia sair andarilhando, mas as lembranças de uma vida debaixo de um teto podam a tentativa de vender sua capacidade de questionar, tendo em vista que quase todos só querem comprar elogios, coisa que ele não dispõe em seu estoque.


Motivos para enfeitar a vida e a morte ele não possui, apenas segue parado, pensando de quanto tempo precisa para abandonar essas indagações que todos os dias batem à porta da sua consciência em busca de respostas. Já nem fica mais triste, pois sabe que, enquanto viver, elas surgirão, aparentemente renovadas, mas tem consciência de que são as mesmas ideias recicladas como um disco de vinil rodando em sulcos arranhados.


Ele sonha em abandonar esse "eu" que teima em aparecer constantemente, mas não tem outro repertório. Será que somos todos assim? Assim como? Com uma única forma de ser e de ver a vida, fazendo as mesmas atividades, sem conseguir abandoná-las, com medo de perder suas antigas e reais características? Se permanecer onde está, ficará desconfortável; se buscar alguma transformação inesperada, pode sofrer ainda mais. Eis o dilema raiz.


Se a vida se apresenta com um enredo previsível, por que alterá-la? Os dias se arrastam e a rotina se torna um ciclo que se repete com a precisão de um relógio, fazendo-o perguntar se vai continuar marcando o passo pelo resto da sua existência, sem poder fazer algo para quebrar essa prisão invisível.


Será que deseja um vislumbre de liberdade ou apenas um alívio? Pensamentos tumultuados se entrelaçam, criando um labirinto onde é fácil se perder, mas ele contraria a expectativa e não se perde. Continua na sua tortura caseira, fabricada com o mesmo objetivo de mantê-lo longe da vida prática que ora se apresenta. 


Numa tentativa de escapar, ele se entrega às memórias. Recorda os dias de juventude, quando as possibilidades pareciam infinitas, e hoje se depara com uma realidade que se impõe de forma autoritária como num beco sem saída.


A nostalgia se torna um fardo que ele quase não consegue carregar. Um desejo intenso de mudança surge, mas logo é abafado por uma voz interna que sussurra sua covardia em ousar.


As questões permanecem sem resposta, flutuando no ar pesado como fumaça. Onde ficou o brilho dos olhos? Aonde se foi a faísca da esperança? A percepção do tempo se distorce, e minutos parecem horas. Nesse estado de inquietude, ele começa a refletir sobre essa capacidade de se contradizer, como uma doença que, vez ou outra, surge para colocá-lo em seu cantinho de humano insignificante.


Ao redor, depara-se com objetos que antes lhe traziam alegria, mas agora são apenas lembranças de um passado distante. O peso da indecisão é opressivo. Sentado na cama, ele tenta formular um plano que poderia mudar sua vida, mas as palavras se esvaem como areia entre os dedos. A frustração cresce, impedindo-o de agir. O que realmente está em jogo? Diante de tantas indagações, ele tenta se conectar com seus desejos mais profundos e logo percebe que eles não mais existem. O verdadeiro desafio é lapidar os fantasmas que habitam dentro de si, transformando-os em aliados, porém, falta-lhe disposição.


A madrugada avança, e ele percebe que o silêncio traz consigo uma nova clareza. Em vez de fugir de suas perguntas, talvez devesse acolhê-las. As respostas não virão da pressão externa, mas sim de uma busca interna, e essa jornada pode ser mais transformadora do que qualquer mudança superficial.


Fecha os olhos e opta por se fingir de morto, como tantas vezes fez diante do sono que dita as regras. Todavia, vê que o amanhã começa a se abrir para infinitos questionamentos que o tornarão mais vivo do que antes.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 16.10.2024 - 04h38min.



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