sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

"CADA DIA COM SUA AGONIA" - Heraldo Lins

 








"CADA DIA COM SUA AGONIA"


Tive que aturar a péssima seleção musical. Como estava demorando, lembrei-me de olhar para debaixo da mesa e deparei-me com uma barata tentando se "aprumar". Diz o bom-senso que se a pessoa estiver entediada deve "mudar a vista" para cima ou para baixo porque sempre há uma novidade "desfocada" pronta para ser contemplada. No meu caso, testemunhei o momento dramático da barata “esperneadeira”. Fico me perguntando se o dono do bar jogou ela ali somente para me entreter enquanto eu esperava a cerveja.

Do meu lado esquerdo, estava uma loira com um conjunto vermelho e o namorado, fazendo selfie. Será que ela pensa que é bonita?  Olhei novamente para a barata e nada dela desvirar-se.

Do meu lado direito, um coroa “danou” a cara dentro da tigela de sopa parecendo um dragão de komodo, a diferença é que o dragão não usa guardanapo. Naquele bar, não tinha nada mais interessante digno de nota. Pulo para a saída. Tudo normal: conta vindo, garçom agradecendo e a barata, ao me ver indo embora, se mostrou ainda mais aflita querendo me seduzir para que eu a colocasse de pé.  

Além da falta de opção, naquela noite fui chamado de tio por uma mulher segurando o cartaz da esmola. Depois, chegou um menino com cabelo pixaim amarelo-dourado mostrando-me umas folhas de coqueiro e queria porque queria que eu olhasse ele fazer artesanato. São tantas as opções para ficar sem dinheiro que se eu não tivesse tido muito cuidado nem poderia ter pagado a conta. 

Eu já vinha de outro restaurante perto da árvore de Natal. Lá é bem luxuoso, com paredes de vidro, cadeiras confortáveis, piso antiderrapante, contudo o munguzá perdeu feio para o da minha avó. A canjica estava sem gosto e a pamonha tinha sido mistura só na água.

Saio de casa para saborear algo melhor, entretanto quase não há opção, e quando tem, custa-me o salário do mês. O que se salva, nesses ambientes de comidas insossas, é a refeição para os olhos. As mulheres vão bem-vestidas, maquiadas e com um sorriso ensaiado para as fotos, amenizando o trauma da gula. 

Dou outro pulo para o dia seguinte e me pego caminhando. Dessa vez, fico imaginando que sou escravo dessa tortura. Não vejo nenhuma graça em correr, porém li que “disciplina é fazer o que não gosta para alcançar o que se deseja”, então tento ser disciplinado. No caminho, encontrei um vira-lata fuçando um saco de lixo. Antigamente colocávamos lixo em latas de querosene vazia, mas como hoje em dia armazenamos em sacos de plástico, acho que os cães vira-latas deveriam mudar o nome para cachorros rasga-sacos.

Para sair da rotina de ficar olhando lixo e baratas debaixo das mesas de bar, convidei minha ex-babá para vir passar uns dias aqui em casa, sem que ela soubesse, com o único objetivo de colher suas histórias. Ela chegou no carro da prefeitura dizendo que eu confirmasse que ela vinha se consultar. Médico de osso. Tudo bem, como já peguei a "manha" de mentir, não houve nenhuma dificuldade. Foi, ela veio se consultar com Doutor Judson na modalidade de atendimento home care. 

Levei o carrinho até a portaria para trazer uma caixa com manga maranhão, bolo preto e docinhos salpicados com farelo de amendoim. Ela acordou logo cedo para enfrentar quatro horas viajando de graça graças a uma mentira confirmada e enfeitada por mim. 

Conversa vai conversa vem, o teor esbarrou na vida da filha caçula com mais de trinta anos. Ela é enfermeira. Teve uma filha, completando dez de idade, com um homem casado. Recentemente estava noiva, porém o noivo, na semana do casamento, trocou ela por outro homem. No início do namoro o povo veio me dizer que ele era "meio assim", mas não interferi. Ela era quem sabia.

Nessa hora, tive saudades do drama da barata.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 22.12.2022 - 12h12min



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