quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Ensaio sobre A Literatura Em Perigo, de Tzvetan Todorov (George Sand – Gustave Flaubert)





Ensaio sobre A Literatura Em Perigo, de Tzvetan Todorov

(George Sand – Gustave Flaubert)

Liliane Mendonça — 09/2022

 

Mais densa e mais eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. (TODOROV, 2009, p. 23)

 

Tzvetan Todorov foi um filósofo e linguista búlgaro que se mudou de Sófia para Paris após sua graduação em Letras, em 1963, para aprofundar seus estudos literários.[1] O escritor nasceu em Sófia em 01/03/1939 e morreu em Paris em 07/02/2017.

Em seu livro “A literatura em Perigo”, Todorov faz reflexões importantes sobre literatura resgatando opinião de especialistas em literatura clássica da poesia, Renascença italiana, estética da recepção e arte pela arte, para citar alguns exemplos. Entre suas reflexões está o fato de que na escola em vez de conhecermos obras literárias aprendemos sobre o que os críticos literários falam dessas obras. O autor comenta também sobre a mudança que houve ao longo dos séculos na forma de pensar a literatura. Caio Meira, em sua apresentação à edição brasileira, destaca que a filosofia socrática acusava a arte poética de subversiva por um suposto poder encantatório da literatura, reconhecendo nela o poder de intervir na formação do espírito das pessoas e até mesmo da realidade como um todo. Para Todorov o perigo que ronda a literatura em nosso século é o oposto disso, ou seja, não ter poder algum e por isso não participar mais da formação do indivíduo. Caio Meira aproxima as reflexões de Todorov ao contexto da educação no Brasil e, em alguma medida, da formação de leitores em nosso país. Todorov reivindica  que o texto literário volte a ocupar o centro e não a periferia do processo educacional (e, por conseguinte, da nossa formação como cidadãos), em especial nos cursos de literatura.

Chamamos a atenção para um pensamento que consta logo no começo do livro. Caio Meira afirma:

O perigo mencionado por Todorov não está, portanto, na escassez de bons poetas ou ficcionistas, no esgotamento da produção ou da criação poética, mas na forma como a literatura tem sido oferecida aos jovens, desde a escola primária até a faculdade: o perigo está no fato de que, por uma estranha inversão, o estudante não entra em contato com a literatura mediante a leitura dos textos literários propriamente ditos, mas com alguma forma de crítica, de teoria ou de história literária.

(TODOROV, 2009, P. 10)

 

Para ilustrar sua opinião sobre o ensino da literatura, Todorov cita, entre outros, o ensino da física que, segundo ele, se debruça sobre suas leis e fórmulas, e nessa disciplina é considerado ignorante quem não conhece a lei da gravitação universal; enquanto em literatura aprende-se as teorias sobre ela, mas é considerado ignorante quem não leu As Flores do Mal, para citar um exemplo do livro. Segundo ele, os autores das obras literárias, quando lidos, permanecem na memória dos leitores, mas os nomes dos teóricos acabam sendo esquecidos. Certamente isso acontece porque alguns romances e poemas nos causam uma impressão tão forte, um prazer tão grande que se tornam inesquecíveis para nós, mais do que qualquer conceito sobre eles. Naturalmente, Todorov defende que aprender sobre a história literária ou análise estrutural de uma obra agrega conhecimento e pode ser útil ao aluno/leitor da obra, mas esse conhecimento é apenas um meio de acesso, algo para ampliar os horizontes e não um substituto para a compreensão do sentido da obra. Todorov afirma que o leitor comum não lê obras literárias para se informar sobre o contexto em que foram escritas, mas sim para tentar encontrar algo que enriqueça sua existência e para que acabe compreendendo melhor a si mesmo, pois o conhecimento que vem da literatura é um caminho que ajuda no desenvolvimento e na realização pessoal do leitor.  Para o autor, nas faculdades de Letras, é natural que se ensinem as abordagens, os conceitos postos em prática e as técnicas, mas as aulas do ensino médio, já que não se dirigem a profissionais da literatura, não deveriam ter o mesmo conteúdo: “o que se destina a todos é a literatura, não os estudos literários; é preciso então ensinar aquela e não estes últimos” (TODOROV, 2009, p. 41).  No que diz respeito ao ensino de literatura, Todorov ainda considera que:

A análise das obras feita na escola não deveria mais ter por objetivo ilustrar os conceitos recém-introduzidos por este ou aquele linguista, este ou aquele teórico da literatura, quando, então, os textos são apresentados como uma aplicação da língua e do discurso; sua tarefa deveria ser a de nos fazer ter acesso ao sentido dessas obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz a um conhecimento do humano, o qual importa a todos. (TODOROV, 2009, p. 89)

 

Um dos destaques do livro é a referência que Todorov faz à postura de Flaubert que ao defender a arte pela arte reivindicando a autonomia da literatura, não esquece que sua criação literária vem de seu conhecimento de mundo. Para Flaubert a verdade é fundamental para que o texto literário seja considerado perfeito. De acordo com Jean-Paul Sartre (1988, p. 599), Flaubert acreditava que ele mesmo poderia discernir entre a boa e a má qualidade de seu trabalho e quando aprovava completamente o que tinha escrito, o trabalho estava terminado. Não gostava de sugestões para alterar seus textos, e não os entregava a revisores, para não correr o risco de deixar o texto perder a harmonia e o ritmo que ele construía a duras penas os escrevendo e reescrevendo obstinadamente.

No último capítulo do livro, Todorov relembra um encontro importante da história literária, qual seja a correspondência trocada entre George Sand e Gustave Flaubert. Embora muito diferentes no modo de ver o mundo, a sociedade, a política e a literatura, Sand e Flaubert trocaram, entre 1863 e 1876, cartas que são verdadeiros documentos históricos de suas vidas e, em alguns casos, também da França oitocentista. Sand e Flaubert eram amigos e ao ler a correspondência percebemos o carinho e o respeito que os unia, sem deixar de notar as diferenças de opinião de ambos sobre suas concepções literárias de que discordaram até o fim da correspondência.

“Sand lamenta que Flaubert não se mostre mais nos seus escritos” (TODOROV, 2009, p. 84), essa afirmação pode ser confirmada em várias cartas, como nesta de 1875 em que lemos:

Não se pode ter uma filosofia própria sem que ela venha à luz. ... acredito que falta a você, uma visão mais convicta e mais ampla sobre a vida. A arte não é somente a pintura. A verdadeira pintura está, aliás, repleta da alma que empurra o pincel. A arte não é só a crítica e a sátira. […] Quero ver o homem como ele é. Ele não é bom ou mau. É bom e mau.[2] (SAND, 1875 apud JACOBS, 1981, p. 511)

 

Sand conhecia bem Flaubert, e cobrava dele por não o reconhecer em seus livros, para ela o que ele faz é criar um autor distante dele, e acredita que ele tenta ser essa outra pessoa intencionalmente. Ou seja, Sand não acha que Flaubert consegue realmente se ausentar do texto. Para ela, ele apenas não se mostra muito e o pouco que mostra não é reconhecível como ele mesmo. Todorov reflete que o que ela censura nele é o fato de não deixar um espaço em seus romances para homens como ele, o que acaba não mostrando fidelidade ao mundo real. Além disso, o quadro que emerge dos livros de Flaubert não é realmente verdadeiro, pois nele haveria uma traição à realidade já que representa apenas a face obscura do mundo, enquanto “A verdadeira realidade, é a mistura entre o belo e o feio, o opaco e o brilhante.[3]” (SAND, 1876 apud JACOBS, 1981, p. 519).

Levando em conta a afirmação de Todorov que representar a existência humana é o objetivo da literatura, e que o autor e o leitor fazem parte dessa humanidade, não podemos deixar de pensar que as reflexões de Sand a esse respeito são pertinentes. Para Sand o objetivo da arte era a nuance, era importante mostrar a natureza humana com as contradições que de fato existem nas pessoas (bom e mau). Todorov esclarece que ela tinha consciência de que Flaubert assim como outros escritores tinham mais estudo e talento que ela, mas ela tinha uma visão mais definitiva e mais ampla da vida. Todorov ressalta: “a correspondência Flaubert-Sand foi importante por versar sobre literatura, verdade e moral” (TODOROV, 2009, p. 83). As divergências entre Flaubert e Sand são uma ótima forma de concluir o livro, justamente por trazerem duas visões totalmente diferentes sobre a arte literária. A discussão Sand-Flaubert, a respeito da escrita literária, traz o ponto de vista não de quem ensina, mas de quem produz e pensa sobre a literatura, buscando a relação leitor-escritor.  

 

 

 

Referências:

 

JACOBS, Alphonse. Correspondance Gustave Flaubert-George Sand, Flammarion, 1981

 

SARTRE, Jean-Paul. L’idiot de la famille. Livros 1, 2, 3. Gallimard, 1988.

 

TODOROV, Tzvetan. A literatura em Perigo. Tradução Caio Meira. Difel (Grupo Editorial Record), Rio de Janeiro, 2009.



[1] Informações extraídas do site: https://www.fronteiras.com/descubra/pensadores/exibir/tzvetan-todorov — em 17/09/2022

[2] On ne peut pas avoir une philosophie dans l'âme sans qu'elle se fasse jour.

...je crois qu'il manque [...] à toi, une vue bien arrêtée et étendue sur la vie. L'art n'est pas seulement de la peinture. La vraie peinture est, d'ailleurs, pleine de l'âme qui pousse la brosse. L'art n'est pas seulement de la critique et de la satire. […]. Je veux voir l'homme tel qu'il est, il n'est pas bon ou mauvais, il est bon et mauvais. (tradução minha).

[3] La vraie réalité, qui est mêlée de beau et de laid, de terne et de brillant.


Obras traduzidas por Liliane Mendonça:







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