sexta-feira, 29 de julho de 2022

CENSURANDO OS PENSAMENTOS - Heraldo Lins

 


CENSURANDO OS PENSAMENTOS


Como é desalentador não ter um rumo para seguir, pensava a mulher diante de uma vida que ainda prometia muitos anos para ser vivida. Estava sentada na poltrona do chefe que fora do seu avô, balançando-se com um prato em cima da protuberante barriga. Adorava batata saindo fumegante da panela de barro, e muito mais naquele horário de final de tarde. Seu jantar quase sendo feito no alpendre todos os dias transformara-se num quase ritual de esperar a noite chegar junto com o marido. Atenta aos gorjeios dos pássaros enquanto repousava sem estar cansada, percebia o valor imensurável de permanecer relaxando na chácara da família. 

Durante a semana inteira estivera praticamente sem ninguém por perto, e ela gostava assim, sem gritos ou intervenções desnecessárias. Nesse lugar, avistando o canavial, poderia pensar o quanto já havia delineado muitos objetivos dos quais se empolgara e este era mais um deles, dizia para si, acariciando a barriga de oito meses contendo trigêmeos. 

E se forem deficientes? Seus pensamentos pessimistas a perseguiam desde o momento que nascera. Sabia das possibilidades positivas, mas só as declarava para ser chamada de otimista, pessoa com boa energia e tudo mais.

Se os filhos forem normais, menos mal, mesmo assim terá três bocas para lhe sugar iguais aos bacorinhos que correm soltos ao redor da casa. Ela será mais uma leitoa no meio de tantas outras, pensou. Agora tenho que me preparar para vê-los repuxados, disse apalpando-se e lembrando-se do marido. Chama-o de meu cavalinho de estimação, isso sem ele saber. Seus segredos permanecem guardados a bem do bom casamento. 

Tinha vontade de fazer travessuras, mas sabe que ele não concordaria, e até tentou, sorrateiramente, com mão de quem não quer e querendo tendo desistido pela repreensão do olhar. 

O que permitirá que lhe abocanhe, será o hormônio natural que domina o amor nas fêmeas, declarou fugindo um pouco da figura do marido para aquela promessa de futuro incerto crescendo em seu ventre. 

Queria ter nascido macho e deve ser por isso que os admira. Quando vê um que lhe chama a atenção imagina como seria tê-lo em seus braços.

Tem medo de ser denunciada pelos seus desejos sapecas. Muitas vezes olha para o chão quando o marido lhe apresenta um novo amigo.O brilho no olho pode ser muito bem interpretado pelo amigo e muito mal pelo marido, por isso se policia constantemente. 

Após estar à vontade, fica olhando de soslaio através das lentes escuras dos óculos. Adora essa busca, e é através da manobra de jogar o cabelo para trás que encontra brecha para admirá-los. 

Se não fosse seu longo cabelo, nem sabe como seria possível os olhares desviados.

O parto será natural e feito pelo doutor jovem que chegou à cidade recentemente. Ele vai vê-la... e só em pensar, fica agitada. Que bom se mostrar a outro homem sem nenhum pudor e com o consentimento do esposo ciumento. 

Ah! Como seria bom se o médico tivesse o mesmo olhar do caseiro! Dizem que quando o bebê está nascendo, é esse o melhor momento, portanto, está ansiosa para sentir o que diz a literatura, de forma triplicada. Acha que foi isso que a convenceu em sentir cólicas e ter o corpo deformado. 

Conseguiu colocar estimulante no suco do marido e ele está vindo até de madrugada, mas não o deixarei com saudade acumulada, diz e  levanta-se para receber o seu homem.

Entram em casa abraçados e... não me autorizam a continuar.



Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 28.07.2022.   − 00:33





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