domingo, 26 de junho de 2022

HUMANIDADE DESUMANA - Heraldo Lins

 


HUMANIDADE DESUMANA


Arrombamentos e uma moradora de rua são subprodutos da vida em sociedade, aparentemente, sem ligação. A invasão da residência ocorreu exatamente quando a garota estava na puberdade. Hoje, abandonada, encontra-se vagando sem saber como encontrar seus familiares.

Para não cansar o visitante desta página, recomendo que não se coloque no lugar dessa família, então, zero de emoção, se possível. São problemas advindos do tráfico de humanos bem mais comuns que imaginamos. 

Ela ficou estudando em casa, sozinha. A cobiça já havia se instalado pela sua beleza e isso estimulou o rapto. Passemos a olhar, diretamente, da mente vítima. 

Nada ouvi até sentir uma mão tapando minha boca. Uma mordaça, substituindo a mão, permaneceu calando meus gritos durante a viagem de avião. Amarrada e encapuzada, fui colocada no compartimento de cargas juntamente com animais silvestres.

 Minha preocupação era com meus queridos pais, mas desconfio que eles estavam bem mais preocupados em quitar a hipoteca da casa do que com meu bem-estar. Na semana do sequestro fui apresentada a uns homens estranhos que se diziam amigos de meu pai. Minha mãe não estava em casa, e eles mostraram sorrisos maliciosos que me deixaram assustada. Comentei com ela sobre o odor de entorpecentes que senti durante os poucos minutos que permaneceram em pé na sala. 

Vou ser morta, eu pensava a todo instante quando havia turbulência no avião. Amanhã tem prova na escola, e o que vão dizer de mim? Relapsa, quem sabe. Covarde por escolher fugir com um amante a tentar ser gente de verdade. Já ouvi muitas dessas histórias nos canais sensacionalistas, agora comigo até parece ser um reality show. Minhas dores nos pulsos são reais. A sede e a vontade de ir ao banheiro, também. Estou me sentindo fraca desde ontem sem me alimentar, e só me resta esperar. Esse barulho e o chão frio deixam-me sem condições de dormir. 

O que diria Freud nessa hora? Você será uma cliente dos psiquiatras o resto da sua vida. Acredito que vai depender do desenrolar dos acontecimentos para que eu possa ter o privilégio de contar isso a alguém. Se eu for ser concubina de um sheik, talvez seja morta quando completar trinta anos. Se eu for encaminhada para o mercado asiático, a máfia irá lucrar comigo e depois alimentarei, com minha carne, os tigres de algum zoológico particular. 

Percebi o avião aterrissando. Peguem as garotas, ouvi alguém gritar. Nem sabia que havia outras mulheres por perto. Sinto mãos fortes levantando-me pelo braço algemado. Empurram-me. Cuidado para não cair vadia, escuto uma voz feminina do lado direito dizer que sou preciosa. Ela tem que chegar sem arranhões. Agora percebo porque as algemas estavam forradas com tecido macio. 

Continuo encapuzada durante o percurso de carro. Alguns solavancos deixam-me perceber que se trata de uma estrada vicinal. Aqui está apertado, fazendo-me acreditar que são mais duas nesse porta-mala. Eu tenho pavor a lugares fechados, mas já estou me acostumando. É melhor não entrar em pânico senão meu coração pifa. Minha mãe já usa marcapasso aos trinta e cinco anos e sou herdeira dela nesse quesito. 

O veículo para e sou a última a ser retirada daquele suadouro. O vento traz um cheiro de plumeria, rosa que aprendi a cultivar na chácara dos meus avós. Devo estar no campo de concentração das preciosidades, como dizem por aqui. Tiram-me as algemas, as roupas e o capuz. Estou enfileirada juntamente com outras jovens. Não podem olhar de lado e permaneçam com as mãos para trás, recomenda o homem com uma arma longa na mão e outras curtas na cintura. Estatura baixa, gordo e com lábios grossos, tem a aparência de Shrek. A diferença é que não é verde. 

Sinto-me constrangida em ser olhada como uma mercadoria de boa qualidade, é o que falam quando aponta para mim. Meus pelos pubianos se arrepiam com o frio comparado ao de uma geladeira, e sinto os mamilos endurecidos. Mandam abrirmos as pernas e gritam: podem urinar! Obedecemos quase instantaneamente. A bexiga estava cheia quase estourando. O medo inibiu as necessidades fisiológicas e nem pude segurar a defecação. 

Os senhores que estavam sentados à nossa frente divertiam-se diante da minha animalidade. Dois passos à frente, ordenaram-me. Mãos na cabeça e mantenha as pernas abertas. Vi um dos senhores pagando para ter o privilégio de me limpar e, logo em seguida, me levou com ele. 

Estava vestida com um roupão no banco de trás da limusine. Meu dono, como aprendi a chamá-lo, mostrava-se sorridente com seus olhos apertados e rosto arredondado parecendo um jerimum caboclo. Servi como depósito de esperma durante vinte anos. Hoje, abandonada à própria sorte, perambulo pelas ruas sem conseguir denunciá-lo. Aqui ninguém presta atenção a uma ex-escrava sexual. Muitos têm medo de serem mortos por ajudar-me, e outros dizem ser o meu karma. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 26.06.2022 - 12:21



2 comentários:

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