quinta-feira, 23 de junho de 2022

DE QUEM PERDEU A VIRGINDADE E VIROU DAMA DA NOITE - Jair Eloi de Souza

Imagem meramente ilustrativa

DE QUEM PERDEU A VIRGINDADE
E VIROU DAMA DA NOITE

Parecia uma manhã qualquer de verão, nuvens carregadas, com tom e forma de cúmulos-nimbos* em choro. Um ritual a derramar lágrimas em sincronia rápida, ameaçando antecipar as águas de março. Navegava na Reta Tabajara, terras de Macaíba dos Mesquitas, deixando a silhueta do mar na rota do Sertão.
De repente o acenar de mãos, vindicando uma carona. Fui acorde ao gesto, parando o veículo. E que surpresa! Era novamente a incansável Mellie. Antiga assistida da banca advocatícia, quando menina, nos anos oitenta. Habitante da rua 1º de maio, em Santa Cruz do Inharé. Logradouro de vida cangaceira e de venda da carne humana.
Cabrocha de olhar maduro, profissional, dissera que perdera ao “quebrar da barra” uma carona amiga, e ali estava a retornar para sua cidade. Disse ser assídua no trecho, e não raro dissipa o tempo e a noite por inteira, num ziguezague infernal em atendimento aos seus clientes caminhoneiros, que como diriam os margeantes da ribanceira do Rio Piranhas: "É uma “verdadeira espoleta de tear, que no seu vai-e-vem maquinal, esquece de tecer a rede e passa a brilhantina nos incautos”.
Confesso que não foi difícil uma incursão inicial, sobre a vida dura que leva aquela rapariga, oficiando nas trevas, noites escuras, assistindo gente desconhecida e sem caráter ou com mau caráter. A solidão dobrada pela saudade dos filhos que ficaram em casa, o constrangimento de se furtar de forma compulsória ao convívio daqueles, e se ofertar a seres animalescos por trinta dinheiros.
E sendo aí, perguntei-lhe; se mesmo naquele motel ambulante, tinha saudade do seu primeiro amor. Em resposta seca, curta, sem nenhum esmero, disse-me: “Não tive, não guardo lembrança, era apenas uma menina de rua, enquanto estava com fome, mas sempre retornava à casa materna, quando o sol se fazia rosa para abraçar o crepúsculo e era chegada a hora do Ângelo."
Não tinha o costume de ir à pracinha do centro à noite, onde brotavam os queixumes, pois, lhe faltava roupa. Até que tentou certa vez, e ao se aproximar da “fina flor”, foi escarrada. Era mendiga, retrato da plebe, em razão de que, estava confinada para sempre no gueto da miséria”.
Finalmente indaguei-lhe, e a cena primeira? Não titubeou, dissera de chofre, “era ainda menina", um taxista nas horas vagas, de nome Zorba, com Praça em Santa Cruz, homem de idade meã, de leveza cristalina na sociedade, a usara da forma mais vil. Tinha a praxe de dar-lhe esmola todas as manhãs, e num certo dia, cumprindo seu instinto bestial, a desflorara ainda criança, com apenas onze anos de idade. Eis o dilema, avisar à mãe da tragédia e perder o freguês que todas as manhãs lhe dava esmola. Teve lugar o silêncio sepulcral.
Mas, a estação do cupido chegou. Após a tragédia infantil, o primeiro namoro brotara com quatorze anos. Era um mestiço campesino, que não tinha a malícia do jovem da cidade. Gente de parte do clã de Chico Caetano, criador de gado vacum, habitava às margens do Rio trairy, num rincão chamado “Caiçarinha do Carneiro”.
As coisas iam bem, sem nenhum atropelo, até quando um comparsa do desflorador, que também investira com incursões “cabidas”, porém de resultados infrutíferos, delatara ao seu namorado. Era a terceira lua do mês de junho, o festeiro São João e o casamenteiro Santo Antônio, aguardavam as homenagens devidas na fogueira.
As noivas desiludidas, que viram passar o maio e as lembranças perdidas em “brumas do passado”, aguardavam as súplicas feitas, como última cidadela para se acasalarem. Foi então que a menina Mellie viu seus planos “amarelarem”. Indagada pelo seu noivo, do fato de não mais ser virgem, assegurada por aquele de que não mudaria seus planos, disse-lhe ser verdade.
Ledo engano, de pronto recebera a censura daquele, Que lhe disse: dali para frente seria diferente. Foi a “gota d´água” para a relação, ali morrera a possibilidade do mundo ganhar uma dona de casa honesta, e como reverso da medalha, ter que conviver doravante com uma dama da noite.
O noivo na primavera seguinte celebrou pacto com outra, casamento marcado, mesmo assim em encontro furtivo e de cenário apelativo, dissera-lhe que se lhe ofertasse o perdão e o quisesse a nubente seria ela. Não logrou êxito aquele. Ao silêncio sepulcral, guardado a sete chaves durante tantos anos pela rapariga, tomara lugar um constrangimento para com as regras convencionais, que nunca mais devolveria o álibi de senhora a Mellie, e sim de prostituta assumida, ou de uma grande dama de aluguel”.
Mellie tem quatro filhos de pais diferentes. Aos trinta e dois anos, perdeu a maciez da pele, a garra de fazer plantão diariamente cedeu lugar à dama envelhecida, carcomida em parte pela gelidez das madrugadas, à beira da estrada. O ritual de fazer prazer na estrada se repete de quatro em quatro dias. Já tem clientela a domicílio, recebe em sua casa, um ancião de oitenta e dois anos, ex-combatente, conhecido de nome João Devoto, que paga o aluguel, luz, água e lhe fornece uma feira mensal, a quem diz gostar, porém sem esconder um riso de hipocrisia, e de quem tem uma filha de dez anos.
Na despedida, indagação, como se fosse um bom e cuidadoso jornalista: Como se cuida? Respondeu a rapariga: “Não me desprendo da velha camisinha. Mas, estou cansada de ser a dama da noite”. O palco nunca foi iluminado. Quando muito, percebia o lampejo dos que anonimamente cruzavam, e que me ofertaram o direito à discrição e ao silêncio nessa relação, guardando o mistério de sobreviver nessa selva de seres desconhecidos”.

JAIR ELÓI DE SOUZA (Advogado, educador e escritor)



2 comentários:

  1. Parabéns ao homem do direito, que nunca se afastou de suas origens sertanejas, que cresceu, como faz questão de dizer:

    "cresci ao lado do meu avô, seguindo o coice da burrarada" ...

    Tem demonstrado amor ao próximo.como poucos, prestando seus serviços gratuitos, como fez com esta pobre mulher.

    Grande abraço.
    João Maria de Medeiros Dantas

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