quarta-feira, 20 de abril de 2022

SIMULTANEIDADE - Heraldo Lins



 SIMULTANEIDADE


A mesa, com suas bordas queimadas com brasas de cigarro, aparecia como prova de antigos jogos de cartas. Há dois dias, os quatro homens teimavam em desafiar o sono. O ambiente permaneceria por mais tempo impregnado de fumaça e coberto por seios fartos das mocinhas bondosas rondando a mesa. O que estava em jogo não era só o jogo em si, mas a capacidade de gostar daquele ambiente sujo.  

Um dos homens pediu uma garrafa vazia para mictar sem sair da mesa. Ao trazê-la, a mocinha teve seu short rasgado pelo jogador gaiato querendo fazer graça, deixando-a, no íntimo, sem graça. 

Em casa, as mulheres dos viciados rolavam na cama tentando conciliar o sono com a falta de tudo. As crianças permaneciam perguntando pelos pais e recebendo respostas de vá brincar. Elas, as pequenas, estavam na idade de serem atrofiadas pela falta da figura paterna e carinho das mães frustradas. 

As mulheres, sem-sono, educavam seus filhos com gritos e palavrões. Moravam um pouco distantes, ligadas apenas pelos vícios dos maridos e pela falta de perspectivas. Uma delas sonhara em ser missionária, mas desistiu quando viu uma ser assassinada. Ninguém falou nada, a vida não tinha tempo em prender os assassinos.

À noite, haveria a festa da paixão. O Rei passaria no jumentinho seguido por vários de branco e vermelho, cruz, peças de metal, onde o badalar do sino orientaria a encenação.  

Mãe, estou com fome. Vá se deitar! Posso ir ao lixão catar? Vá para onde quiser, desde que me deixe morrer. Os ramos balançados na festa, nada podiam fazer por aquela que não acreditava. 

As pessoas de fora não depositaram lixo nas calçadas, pois estava chovendo. A chuva parou, a fome, não. Como é bonito ver alguém com sacolas de feira nas mãos, e mais bonito ainda é vê-las colocando-as no porta-malas, recorda-se uma das mães que quando fazia isso não se dava conta de quão bom era ter alimentos em casa. 

O que me fez chegar aonde cheguei? pergunta-se uma outra. Sua realidade não a deixa encontrar a resposta. Tudo está embaralhado, como as cartas sujas de sangue pelo assassinato de um dos jogadores. Ela nem sabe que seu marido gaiato não voltará para casa. 

As mocinhas prestam depoimento e dão entrevistas para os canais, sorrindo, tentando chamar a atenção de um caça-talentos. A mídia faz a festa nessa Páscoa. Crime bárbaro nas barbas de Barrabás, é o título de um jornal sensacionalista. Muitos influenciadores recheiam seus canais com likes de última hora, enquanto as crianças dividem um frango estragado, no lixão.


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 20.04.2022 - 07:38



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