sexta-feira, 8 de abril de 2022

DA ÁGUA PRO VINHO - Heraldo Lins

 


DA ÁGUA PRO VINHO


Sou um homem sadio, bom e agradável, aliás, não entendo por que sou assim. Acho que preciso de um pouco de maldade e doença para poder ser respeitado, e, também, lastimar-me da vida. Tudo eu acho do bem, legal, ideal em todos os sentidos. Chamam-me de inocente, mas sei onde está a maldade, mesmo assim, não tenho disposição para a prática desse expediente, é tanto que ainda hoje fico a imaginar o que teria acontecido se eu tivesse pisado no freio a cento e quarenta quilômetros por hora quando um motoqueiro suspeito vinha pegando o vácuo do meu carro.

Há muito tempo que vivo assim, desgarrado do meio social por não ter inveja nem ambição. Todos, eu trato bem e sou maltratado por não me importar que me maltratem. Acho uma piada a pessoa se aborrecer com conversas bobas. Eu me coloco no lugar de quem está contando a história. Se para eles é importante falar das riquezas, deixo-os falarem para ver se encontram uma sustentação afetiva que faça a vida valer a pena. 

Fui ao médico para ver se ele diagnosticava algum desvio mental na minha percepção da vida. Sentei-me e ele perguntou o que eu sentia. Disse-lhe que muita alegria, saúde e paz, e achava que aquilo não era normal. Durante a consulta ele não encontrou nenhum motivo da minha visita, é tanto que devolveu meu dinheiro. Não havia remédio que ele pudesse receitar, até por que sentir-se feliz não é doença. Eu insisti: é, porque todos me dizem que sou anormal, doido, que vivo rindo sem ter razão. Queria que o senhor receitasse um depressivo, um agitador dos nervos, nem que fosse um remédio com efeitos colaterais contra a alegria. Não tinha. Saí de lá de mãos abanando. 

Parti para uma destruição do meu caráter, sim, porque já disseram que um homem de caráter é medíocre, e eu prefiro o contrário. Quero ser canalha, disse em casa ao chegar da rua. Patife da mais alta estirpe, decidi ser, mas para isso teria que fazer um curso com alguém que era visto como tal. A mulher me preveniu dizendo que é preciso vocação para ser falso, dissimulado, covarde e outras variações não apropriadas para uma pessoa como eu.  

Insisti, e fui à procura de larápios e de sonegadores da verdade. Onde estavam? Não os encontrei. Todos se diziam melhores do que eu. Fiquei contente, mais ainda por não precisar fazer curso. Se eles eram melhores de que eu, então eu já era o mais alto padrão de maldade existente no mundo. Que bom! Fiquei satisfeito por algumas horas, até alguém achar que eu ainda estava sendo bonzinho e me chamou de inseto. Posso ser tudo, mas inseto, isso eu tenho certeza que não sou. Parti para a briga e fui exercitar meu poder de ser mal. Mandei fazer um pudim com açúcar além da receita, só para a mal-amada ficar com as taxas altas. Mandei dizendo que era um admirador secreto da sua beleza, e ela achou ótimo consumir aquela bomba. Eu agora estou assim: ruim. 

Entretanto, estou convencido de que em toda maldade há um pouco de desvio mental manifestado inconscientemente. Eu não me encaixaria nesse padrão já que eu tinha consciência da minha maldade. O mal, por si só, bebe constantemente uma amargura crescente em seu ser. Todo momento jorra no peito de quem a carrega uma vontade incontrolável de ser um ser desprezível. Onde vou encontrar isso? Meu fígado precisa produzir mais bile para me tornar áspero, disseram-me. Limão serve? Passei a tomá-lo espremido em tudo que ingeria. Não funcionou com a maldade, mas foi ótimo para que eu treinasse fazer caretas, e assim passar a imagem de mal. Pelo menos, para isso serviu. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 07.04.2022 – 16:04



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