Durante boa parte de minha vida tive ideias errôneas acerca da origem de nossa língua. Graças a Bagno e a Isabel Rei Samartim, cheguei a um melhor entendimento. Depois da leitura desta entrevista, você terá bons motivos para orgulhar-se de nosso idioma e aumentará em muito sua bagagem cultural. - Gilberto Cardoso dos Santos, entrevistador
GCS.: Ilustre entrevistada Isabel:
Moro em um país cheio de galegos. Em toda localidade há alguém que por
causa da cor da pele é chamado de galego ou galega. Alguns são apelidados de
galego sarará. Temos até uma música que se tornou clássica no Brasil chamada
“Galeguim do zoi azu”, gravada por Genival Lacerda. Hoje mesmo troquei umas
palavras com o Galego da Quentinha. Disse-lhe:
- Você sabia que há um lugar onde os moradores são chamados de galegos?
- Que país é esse, perguntou-me ele bastante surpreso.
- Trata-se da Galícia, ou Galiza.
Sem conter o espanto e certa incredulidade, indagou:
- Quer dizer que lá só tem gente de minha cor?
- Não, expliquei-lhe. – Assim como na África nem todos são negros, lá
há morenos, loiros, negros... No entanto, parece haver uma predominância de
pessoas da sua cor, não sei ao certo.
Finalizamos a conversa, e ele retirou-se bastante admirado com o que
ouvira.
Inicio, pois, este diálogo pedindo-lhe que comente a respeito disto,
pois imagino que esteja ciente dessa realidade no Brasil e tem
condições de nos dizer a causa.
Isabel: Galiza é esse lugar onde os moradores se chamam de
galegos, quer dizer, galego é um
gentílico, uma palavra que designa os indivíduos segundo o seu local de
procedência e não somente um adjetivo a indicar a cor da pele. É bem certo que
@s galeg@s, como a maior parte de europeus, costumamos ser pessoas de pele
clara, mas existem galeg@s de todas as cores, tanto na Galiza quanto no mundo,
pois a nossa população está também muito estendida devido às contínuas
emigrações. É possível que essa ideia do galego ser pessoa de pele clara se
tenha formado na afluência da emigração galega ao Brasil. Não parece casual que
precisamente o nosso gentílico, hoje desconhecido no Brasil, tenha sido a
palavra escolhida para representar pessoas que são como nós. Por significar
"cor da pele" ele passou a ser aplicado a todo tipo de pessoas com
essas características. Acho muito simpático que no Brasil pessoas com apelido
alemão, italiano ou inglês sejam adjetivadas de "galegos". É a
grandeza do Brasil, país-continente que para os galegos da Galiza é nosso
grande netinho querido.
GCS.: Fale-nos sobre suas origens geográficas e familiares.
Descreva-nos um pouco o seu país e sua gente, número de habitantes...
Isabel:
Galiza situa-se no extremo
ocidental da Europa, a Norte de Portugal, no cantinho noroeste da península
ibérica. Atualmente somos arredor de 2 milhões e oitocentos mil galeg@s a
morarmos cá. O governo da Galiza é um governo regional pertencente ao Reino da
Espanha, por isso as galegas temos passaporte espanhol e conhecemos a língua
castelhana. Além disso, recentemente Santiago de Compostela tem entrado na
União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa (UCCLA).
Eu provenho de uma família
galega de lavradores, como tantas outras no meu país. Filha de galegos que
foram filhos e netos de galegos. Meu pai, de nome Manuel, pertenceu a uma
geração que decidiu não continuar nos labores agrários, mas aprender o ofício
de carpinteiro e depois o de capataz na construção. Ele teve uma vida de
aprendizagem contínua. Primeiro conseguiu trabalho no Brasil, em São Paulo,
onde aprendeu música e a tocar o acordeão, depois trabalhou em diversos locais
da Espanha e finalmente na Alemanha, país que ainda hoje reconhece o seu labor
na reconstrução da Estugarda da após-guerra mundial. Minha mãe, de nome Preciosa,
pessoa destinada pela família a levar a fazenda camponesa, deitou por terra
esses desígnios ao casar com Manuel e participar na aventura vital que deixava
para trás a vida agrária. Eles tiveram três filh@s d@s quais eu sou a terceira
e seródia criança.
Nasci, portanto, numa pequena
vila da Galiza, A Estrada, brote urbano no coração do vale do rio Deça. É aos
domingos pelas três horas da tarde quando mais se percebe a Estrada como uma
estranha flor crescida no meio das verdes pradeiras galegas. Dela, como de
muitas outras vilas, partiu durante os últimos duzentos anos um número imenso
de pessoas a fugirem duma pressão económica insustentável para outros países da
Europa e também, especialmente, para a América do Sul: Brasil, Argentina,
Uruguai, Venezuela são países que nos acolheram e nos deram oportunidades,
emprego, refúgio, tanto para reverter as dificuldades económicas quanto para
desenvolver as atividades políticas que com as condições da Espanha eram
impossíveis de imaginar. Não se conhece o número exato de emigrantes galegos no
mundo, mas algumas fontes falam que, entre filhos e netos, este duplica a atual
população a morar na Galiza.
GCS.: Percebi que questões relacionadas à língua estão no centro de
suas preocupações. Qual a sua formação e o que a motiva a lutar pela
preservação do idioma galego? Trata-se de um idioma ameaçado de extinção? Há
cerca de quantos falantes?
Isabel:
Eu sou música violonista, aqui
dizemos guitarrista. Dou aulas no Conservatório Profissional de Santiago de
Compostela, toco em concerto sempre que tenho oportunidade e pesquiso sobre
música galega na área dos instrumentos de corda dedilhada. O meu interesse central
é a música, mas reconheço que a defesa da língua na Galiza permeia todas as
minhas atividades. O espírito crítico dos meus dous irmãos, que me educaram na
leitura, na música e na dignidade de sermos galegos, prendeu na minha maneira
de ver o mundo e já desde criança me acompanharam os estudos de violão, os
exercícios narrativos e a consciência da vida como mulher galega.
Desde que acabou a ditadura
franquista na Espanha e se puseram em andamento as dobradiças da Transição
surgiu na Galiza um movimento composto inicialmente por professorado de língua,
que depois chegou a representar todo um setor da sociedade galega que se chamou
e se chama de Reintegracionismo. Este movimento dava os primeiros passos na década
de 70 e lutava na década de 80 contra a imposição por parte dos governos
regional e central de um modelo de língua para a Galiza que nos afastava da
norma portuguesa, que é a nossa referência mais importante. O afastamento
académico procurava condizer com o afastamento político que o governo desejava
para as pessoas galegas a respeito das portuguesas na nova etapa que se abria
no Reino da Espanha. Por motivos que só se podem compreender desde o egoísmo, a
vontade natural de comunicação entre galegos e portugueses tem sido motivo de
reprovação pelas autoridades espanholas.
Com quinze anos integrei a
associação reintegracionista da Estrada, que se chamava Associação Cultural
Marcial Valadares. As associações de pessoas contra a imposição do modelo
isolacionista de língua, que nos afastava do português, brotaram durante os
anos 80 em numerosas vilas por todo o território galego, permaneceram com
dificuldades durante os 90, desapareceram na sua maior parte com a mudança de
século e ressurgiram com força na primeira década do s. XXI como Centros
Sociais. Outras unificaram-se em poucas mas alargadas associações, fundações e
editoras que hoje apresentam uma intensa atividade, como são a Academia Galega
da Língua Portuguesa (AGLP), a Associação Galega da Língua (AGAL), e a Através
Editora.
O que aqui chamamos de
"Galego" não é outra cousa do que uma variante da língua portuguesa
própria da Galiza. O galego é português da Galiza, como o brasileiro é
português do Brasil. Também gostamos de dizer ao contrário: O que hoje se
conhece por "língua portuguesa" nasce antes do que o próprio Reino de
Portugal, nasce na Galiza, portanto, o nome inicial de todo o sistema
linguístico é Galego. Segundo isto, o português e o brasileiro são variantes do
Galego, são galegos de Portugal e do Brasil. Foi por isto que causou tanto rechaço
entre o professorado a imposição na década de 80 de uma norma ortográfica
divergente com as regras mais elementares da língua portuguesa. Mesmo havendo
diferenças linguísticas entre Brasil e Portugal, ninguém vai ter a peregrina
ideia de escrever a palavra Geografia por Xeografía,
ou a palavra Canção por Canción,
porque nenhum linguista brasileiro ou português admitiria violações tão graves
do alfabeto, das regras de acentuação, da etimologia e da morfologia própria
das palavras em língua portuguesa, por mais variantes que observarmos dentro do
nosso sistema linguístico comum.
Os
dados numéricos sobre os falantes de Galego na Galiza são, por desgraça,
confusos. Tudo ao redor do emprego da língua é obscuro. Os inquéritos oferecem
resultados cada vez mais negativos quanto ao emprego da língua nativa entre as
crianças. Objetivamente pode afirmar-se que, na atualidade, o português na
Galiza é ensinado nas escolas oficiais de primário e secundário num modelo
afastado da língua portuguesa que emprega muitos elementos da gramática e do
léxico da língua castelhana e está de costas viradas para o modelo de português
europeu. As crianças que aprendem a língua assim não adquirem competências para
dominar o português escrito nem falado. O número de moradores não coincide com
o número de falantes e o número de falantes regulares decresce a cada inquérito
pela concorrência do Castelhano, que também é língua oficial na Galiza
GCS.: Durante muito tempo desconheci a real origem da
língua portuguesa. Através do linguista Bagno eu aprendi que razões políticas
foram determinantes para que a história fosse mal contada. Por favor, diga-nos
o que sabe e o que pensa a respeito disso.
Isabel:
O que hoje conhecemos como
língua portuguesa nasceu no antigo Reino da Galiza produto da evolução e
mistura do hegemónico latim vulgar com a língua celto-galaica dos nativos kallaiki, ou galegos. É por isto que a
parte menos ortodoxa da Academia começa a entender que galego é uma palavra que serve para nomear a língua que já existia
antes da independência do Reino de Portugal em 1143. Daí as Cantigas
galego-portuguesas. Entendamo-nos com a terminologia: Resulta um bocado
estranho chamar de "português" uma língua antes de existir Portugal.
Quer dizer, quando Afonso Henriques empreende a sua guerra de independência do
Reino da Galiza que dará na formação do Reino português independente, em que
língua ele fala? Qual a língua que aprendeu da sua mãe? A língua portuguesa não
começa em 1143 porque já existe previamente. Por isso não parece apropriado lhe
chamar de portuguesa e sim pelo nome da administração vigorante na época, que
era o Reino da Galiza. Portanto, o português é galego.
Por outro lado, sei que antes
afirmei o Galego ser uma variante da língua portuguesa. Essa explicação é um
argumento teórico para entendermos a situação sem provocar curto-circuitos
mentais desde a primeira frase. Na realidade, a língua portuguesa é o Galego de
Portugal nacionalizado e modernizado como afirmou o nosso Vilar Ponte. Do ponto
de vista das elites, quando uma língua perde o poder político, perde também a
sua condição de língua erudita. Isso aconteceu com a língua na Galiza. Portugal,
como reino independente, foi o revezamento desse poder galego que deu à luz as
primeiras gramáticas e romances, e desenvolveu a linguagem administrativa e
política. A língua na Galiza dos últimos cinco séculos apenas teve desenvolvimento
escrito e sobreviveu na oralidade do povo que nada mandava nas questões das
elites, como é o costume. Quando no s. XIX começa a recuperação da escrita, a
situação é tão precária que os próprios notáveis galegos desconhecem qual seja
a gramática e ortografia a empregar e tampouco procuram luz nos escasos, mas
existentes, conselhos deixados em séculos anteriores. Exemplo disto é a impagável
sinceridade da grande Rosália de Castro no prólogo da sua obra, Cantares Galegos (1863) onde
literalmente a autora pede desculpa por desconhecer as normas da escrita da
língua. Ela e resto de intelectuais galeguistas improvisaram ortografia, sintaxe
e gramática, empresa ciclópica que, como é compreensível, não conseguiram
realizar de maneira sistemática nem ordenada. Finalmente surgiram as vozes que
lembravam olhar para a língua em Portugal, na procura do modelo de língua mais
adequado às falas galegas. Estamos já no século XX.
GCS.: Vi, em minhas pesquisas, que em seu país têm feito passeatas
públicas para defender o idioma galego. A impressão que dá é que parte de sua
gente e você sofrem muito preconceito linguístico. Há outras questões envolvidas
nesta luta?
Isabel:
A perda do poder político na
Galiza acontece como consequência, primeiro, da independência de Portugal e,
segundo, da dominação de Castela. A ambição imperialista castelhana leva a
organizar autênticos pogroms contra
as elites e gentes galegas. O resultado foi nefasto para a nossa sobrevivência
como povo. Esta situação manteve-se por vários séculos e não melhorou com a
mudança de regime político e económico no século XIX. A chegada do Capitalismo
na sua vertente mais moderna, com as suas crises cíclicas que afetaram em
especial às culturas agrárias como a galega, conseguiu reduzir ao mínimo a
nossa dignidade como coletivo. O resultado é que temos assumido a emigração
como uma via natural de sobrevivência, a falta de soberania como um mal
endémico, e a pobreza como uma doença crónica num país rico e vital como o
nosso, o qual dá tudo num grande absurdo.
O governo galego atual tem
favorecido as políticas centralistas, tanto económicas quanto culturais e
educativas. Impõe um modelo de língua pouco adequado, de âmbito regional, que lança
uma imagem do galego como dialeto instável, a sofrer absurdas mudanças a cada
década, e que nega aos galegos a condição de falantes de uma língua
internacional e oficial em sete países do mundo.
É por isso que há
manifestações, protestos, atividades alternativas. O governo não ajuda à
consolidação da Galiza como um país autónomo e começa por dinamitar a língua,
além de fazer o mesmo com o tecido económico, empresarial e cultural. Desde o
governo atual na Espanha tampouco há vontade política de favorecer o
desenvolvimento da Galiza, longe disso o seu maior logro tem sido a instalação
do caos organizativo a impedir qualquer desenvolvimento social justo e
democrático.
GCS.: Em um vídeo que não consegui reencontrar, vi um cartaz com a
seguinte afirmação: “Quanto mais o galego é galego, mais português ele é.”
Peço-lhe que corrija a frase, caso necessário, pois cito-a de memória. Este
pensamento pareceu-me bastante curioso, principalmente naquele contexto. Por
favor, discorra sobre ele.
Isabel:
Acho ser paráfrase da citação
do nosso escritor da vila de Rianjo, Rafael Dieste, quem em 1926, diz:
Existe entre o galego e mais o português
tão estreita afinidade que quanto mais português é o português e mais galego é
o galego, mais vêm a se assemelharem.
Vem a dizer que se libertarmos
a língua dos galegos da contaminação de castelhanismos e se pegarmos na língua
mais genuína dos portugueses, que não é aquela fashion de Lisboa, ambos falares vêm a se assemelharem como duas
gotas de água. O qual indica a perceção que tinha o autor das diferenças a um
lado e outro da fronteira entre Galiza e Portugal. O reconhecimento da unidade
da língua é um ato de responsabilidade social e política que, precisamente por
essa responsabilidade, reconhece das diferenças. Elas estão aí, nós não falamos
como os portugueses, mas essas diferenças não devem ser hiper-destacadas até ao
ponto de sugerir a ideia de serem duas línguas diferentes, porque nem do lado
português podem permitir-se perder o território de origem da língua, nem do
lado galego podemos sobreviver sem o conhecimento da língua atual, tal como é
hoje no mundo. A inflação linguística a que somos submetidos os cidadãos
galegos pelas autoridades do governo regional está a provocar no nosso sistema
uma crise sem precedentes.
GCS.: Ouvindo nativos da Galícia, percebe-se uma enorme semelhança com
o português. Destaque as aproximações e distanciamentos que você considera mais
interessantes. Gostaria que discorresse sobre o uso do “x” no lugar do “j”.
Isabel:
Há várias pronúncias galegas,
até nisso está atomizado o português na Galiza. Certo é que costumamos
palatalizar e nos últimos quarenta anos temos perdido a diferença entre a
pronúncia de "j"/"g" e "x", mas não saberia dizer
quanto desses traços, que hoje se podem identificar como galegos, são produto
do ensino deficiente da língua. Perdemos essas distinções e também estamos a
perder a abertura das vogais, traço indiscutivelmente galego que, além do mais,
nos aproxima à oralidade brasileira. Esta última perda é ocasionada pela
preeminência do ensino da oralidade em castelhano e a deficiência do ensino da
oralidade em galego. Esta diferença entre as duas línguas oficiais da Galiza
explica-se juridicamente pelo seu status diferente e assimétrico. Ambas as
línguas são oficiais, mas juridicamente só o castelhano é de obrigado
conhecimento. Segundo as leis espanholas, o galego não é uma língua de conhecimento
obrigado para os galegos. Isso significa que a legislação do Reino da Espanha
dá maior importância à aprendizagem de castelhano que à aprendizagem da nossa
língua própria. Antes dizíamos que o governo espanhol não ajudava ao nosso
desenvolvimento. Eis uma boa amostra.
GCS.: Alguns linguistas brasileiros julgam que o português aqui falado
distancia-se tanto do português lusitano que deveria ser chamado língua
brasileira. Que pensa a respeito disso? Consegue perceber muitas ou poucas
diferenças? Qual português se aproxima mais do galego: o lusitano ou o
brasileiro?
Isabel:
A nossa oralidade aproxima-se
mais da oralidade brasileira. Um falante galego de cultura média entende melhor
as pessoas do Brasil que a TV de Lisboa. Mas também isso é devido à falta de
educação sistemática em língua portuguesa. Por acaso não é mais um paradoxo que,
falando a mesma língua, não consigamos entender o padrão oral do país vizinho,
país que consideramos extensão da Galiza? Para mim acho muito evidentes as
diferenças de sotaque e de pronúncia entre os diversos países lusófonos. Mesmo
acho diferenças entre brasileiros dos diferentes Estados do Brasil. É o normal nas
línguas com muitos falantes cujo uso se estende ao longo do mundo, por isso a
unificação da escrita é tão necessária. É necessária para servir como
identificação de algo que é maior do que um país ou do que nós mesmos, algo que
é ao mesmo tempo pessoal e social, algo que nos conforma, mas que não morre
connosco, que nos sobrevive. A língua, a nossa bandeira internacional.
GCS.: Em que comunidades de fala
portuguesa já esteve? Destaque pontos de divergência. Há algum outro local fora
da Galícia onde se fala o galego?
Isabel: Costumo viajar a Portugal e tenho estado no Brasil. Em
Lisboa tenho conhecido pessoas de quase todos os países onde a língua
portuguesa é oficial. Em 2014 gravei um disco na Ilha da Madeira com música
para viola madeirense. Tenho amigos portugueses e brasileiros, mas também
angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos, são-tomenses, mantenho conversas com
timorenses, com pessoas da ilha do Príncipe e com pessoas de diversos Estados
do Brasil. Adoro a mistura de sotaques, acho que só dentro desse mundo tão
diverso faz sentido dizer que galego não é português. Porque a comprovação da
deliciosa variedade oral da língua portuguesa revela de modo absolutamente
definitivo que na Galiza falamos um português, o nosso peculiar português. Ou,
se quisermos pôr em destaque a origem da língua, falamos o nosso internacional
galego. Fora da Galiza, o nosso peculiar português, ou o nosso internacional
galego, com maior ou menor grau de conhecimento fala-se em todas as comunidades
galegas ao longo do mundo. Aqui dizemos que há galegos até na Lua. Devem ser
poucos os países que não têm um Centro Galego nalguma das suas cidades. Aí no
Brasil têm uns quantos, por vezes disfarçados de centros espanhóis, o qual não
deve interferir na certeza desses centros estarem conformados, em muitas ocasiões,
por maioria de pessoas da Galiza.
GCS.:
Imagino que, assim como ocorre comigo em relação ao vosso idioma, os defensores
do idioma galego sintam-se atraídos pelo português e vejam com bons olhos o
fato deste contar com tão grande número de falantes. Aliás, penso que vocês,
devido a discriminação, tenham um interesse superior. Qual o nível de presença
e de influência da literatura e da programação televisiva luso-brasileira na
Galícia?
Isabel: Certamente, o número de falantes de língua portuguesa,
este sim conhecido, é um argumento poderoso para quem procura a continuidade do
uso da língua na Galiza. Além do galego ser a nossa língua própria e isso ser
em si um valor absoluto que não precisa de outros valores, é evidente que na
sociedade galega atual produz-se uma luta entre uma língua internacional como é
o castelhano que avança com toda a sua presença mediática, e a fala dos galegos
tratada pelo governo regional como um idioma pitoresco e contestada por parte
da população civil que, organizada no movimento reintegracionista, procura
quebrar essa visão isolacionista da língua para podermos estabelecer uma
igualdade com o castelhano. Para uma luta eficaz contra a imposição do
castelhano, o português é um aliado indispensável. Atualmente a presença da
língua nativa nos meios de comunicação galegos é mínima em comparação com a
presença da língua do Reino. E a presença dos meios de comunicação portugueses
e brasileiros na Galiza é inexistente. De novo, o governo regional incumpre as
suas próprias leis, que desde 2014 mandam promover a língua portuguesa. Quase
nada foi feito nessa direção. O nosso governo nos envergonha e nos mata como
sociedade.
GCS.: Foi
feito um acordo ortográfico assinado pelos países de Língua Portuguesa. Que
sabe e pensa a respeito disso?
Isabel:
O Acordo Ortográfico é uma
necessidade de primeira magnitude para todos os países e regiões onde a língua
portuguesa tem raízes. A unificação ortográfica permite construir na escrita
uma bandeira internacional que nos identifica na nossa diversidade. A oralidade
nunca deveria ser fundamento das mudanças ortográficas. A ortografia pertence
ao mundo da escrita, que é um mundo diferente ao das pronúncias e os sotaques.
Na escrita as regras vêm dadas pela tradição escrita, a história das palavras,
a etimologia. Até a paleografia tem mais a ver com o Acordo Ortográfico do que
o sotaque de qualquer cidade brasileira ou portuguesa. A oralidade é outro
mundo fascinante, revelador, mas não tem a ver com o ato da escrita. Falar não é
escrever, dizia o ferrolano R. Carvalho Calero, professor na Universidade de
Santiago de Compostela, poeta, gramático e romancista. Portanto, escrever não é
falar, não tem de haver univocidade absoluta entre as letras e os sons que
pronunciamos. Dentro de umas margens, pode haver alguma falta de correlação. Podemos
escrever "uma" e pronunciar "um-ha", como fazemos na
Galiza. Podemos escrever "facto" e pronunciar "fato".
Podemos escrever "mas" e pronunciar "mais", escrever
"sub" e pronunciar "subi", escrever "cantar" e
pronunciar "cantare", escrever "flauta" e pronunciar
"frauta". Ninguém deveria fazer um drama com isso. Nem tampouco ao
invês. Se houver vontade de manter diferenças nalgumas palavras, podem
manter-se sem problema, incluem-se no texto do Acordo e aplicam-se. As diferenças
são mínimas, mas tenho a sensação de elas estarem a ser exageradas pelos
detratores que parecem mais procurar a falência da iniciativa do que fornecer
ajuda para a melhorar. Na minha humilde opinião, as divergências na
interpretação do que é e para que serve a ortografia refletem uma deficiência
na formação linguística dentro dos próprios países de língua portuguesa, que
concede um excesso de importância ao costume e demonstra falta de generosidade
pelo bem comum. Os galegos que, ensinados a escrever Xeografía estamos dispostos a dá-lo tudo por aprendermos a escrever
Geografia, vemos com certo assombro
as guerras que se produzem pela queda de um c
etimológico ou pelo uso do hífen. Guerras que às vezes acham mais clara
explicação em lutas partidistas do que em questões filológicas e que mantêm o
processo estancado sem hipótese de avanço.
Duas delegações de
intelectuais e professores galegos trabalharam nas reuniões do AO de 86 e de
90. É importante lembrar que mesmo Galiza não sendo um país independente, foi
convidada a fazer parte daquelas reuniões técnicas em que foram admitidas duas
palavras típicas galegas (brêtema,
névoa, e lôstrego, relâmpago).
Depois, já em 2015, a Academia Galega da Língua Portuguesa contribuiria com o
Vocabulário Ortográfico da Galiza para integrar o projeto, ainda inacabado, do
Vocabulário Ortográfico Comum, com mais de cento e cinquenta mil palavras, que
está a ser preparado pelo Instituto Internacional da Língua Portuguesa, IILP.
Atualmente, a Lei Paz-Andrade, aprovada em 2014, que estabelece o ensino de
língua portuguesa na Galiza, foi produto da movimentação social que reuniu os
apoios necessários para a apresentação de uma Iniciativa Legislativa Popular que,
finalmente, foi bem sucedida ainda que, como disse antes, carece de impulso
orçamentário.
GCS.: Isabel, no Brasil temos
lutas um pouquinho parecidas com a do povo da Galiza para manter vivas as
vertentes regionalistas de nosso idioma; em minha dissertação de mestrado defendi
a inclusão de escritos representativos dos diversos falares da linguagem
regional nos conteúdos escolares das respectivas regiões em que vivem os
educandos. A ideia é não sucumbir às imposições da norma culta nem às
influências estrangeiras, mas manter a unidade na diversidade. Citei a frase de
Ariano Suassuna, saudoso defensor do regionalismo nordestino, que disse: “Eu
não troco meu “oxente” pelo ok de seu ninguém”. Gostaria que tecesse considerações
a esse respeito.
Isabel:
Acho maravilhosa a ideia de
aprendermos as expressões próprias da nossa região. É uma riqueza que torna a
língua ainda mais poderosa ao ser alimentada em toda a sua diversidade. As
pessoas ficam mais integradas no seu contexto e ao mesmo tempo aprendem as
diferenças com o padrão comum. Manter a unidade na diversidade é, sem dúvida, o
grande objetivo da língua portuguesa para o século XXI. Só acrescentar que era
bom não termos de aguardar ao final do século para atingirmos alguns alvos
nesse sentido. Na Galiza temos demasiado do próprio e uma falta imensa do
comum. Na hora da integração galega na Comunidade de Países de Língua
Portuguesa teremos de saber temperar bem aquilo que queremos manter da nossa
especificidade com os traços comuns que devemos assumir como próprios em bem de
tod@s.
GCS.: Li bons textos produzidos por escritores galegos e ouvi músicas
do cancioneiro folclórico, da época do trovadorismo. Ouvi UN CANTO A GALICIA JULIO IGLESIAS e Graças a você, conheci a excelente cantora Helena de Alfonso, que brilha
em língua galega. Fale-nos dela e de outros artistas, compositores e escritores
fiéis às raízes.
Isabel:
Na Galiza atualmente temos
duas grandes orquestras clássicas e mais duas de câmara, há nove conservatórios
oficiais com mais de 5000 alun@s, escolas e academias privadas de todos os
estilos musicais, e um grande número de valores da nossa música que destacam em
diferentes âmbitos como a composição, a interpretação, a investigação e a
edição musical. Uxía Senlle e Ugia Pedreira, duas cantoras excepcionais; Abe
Rábade e José Nine, mestres do jazz e a fusão; Iria Cuevas, Alejo Amoedo,
Samuel Diz e Sergio Franqueira na música clássica galega; a Central Folque, na
pesquisa sobre música popular; Resonet, Martim Codax, Capela Compostelana, na
música medieval; e músic@s doutros países que vieram cá contribuir para o
desenvolvimento da música galega, como a excelente cantora polaca de música
medieval, Paulina Ceremuzynska, ou o irmão brasilego (sic) pois já é meio
brasileiro, meio galego, Sérgio Tannus, e também o Fred Martins, entre tantas
outras personalidades musicais que amam Galiza e fizeram sua a nossa música.
Uma última lembrança para um galego internacional que nos deixou há pouco,
guitarrista como poucos e imenso na sua vitalidade, o grande Narf (Fran).
Helena de Alfonso é uma
cantora extraordinária de todos os pontos de vista. Ela e o seu companheiro,
José Lara Gruñeiro, ambos os dous de Madrid, vieram morar à Galiza há uns anos.
Assentaram em Rianjo, uma vila costeira das Rias Baixas, berço natal de uma boa
parte da melhor intelectualidade galega, e rapidamente se integraram na vida
social, na música e na língua. Junto com José Luís do Pico, intérprete e
pesquisador excepcional, integram o grupo Barahúnda que interpreta desde
cantigas medievais galegas até cantos saarauís, desde música sefardi até García
Lorca.
No âmbito da literatura, para
conhecer o que se faz em português galego é preciso não perder os livros da
Através Editora, que na atualidade é a única editora a promover maciçamente a
língua portuguesa na Galiza.
GCS.: Fale-nos das variações dentro do próprio idioma, de como encara a
presença de estrangeirismos. No vídeo Comedia - Diferenzas/Diferenças entre o galego e o portugués/português brasileiro
aprendi que para alguns galegos “gato” grafa-se como “ghato” e corresponde à
pronúncia “rato”. Neste vídeo, que você
bem conhece, são estabelecidas diferenças que nos parecem curiosas. Por favor,
fale um pouco a respeito dele.
Isabel:
Esse vídeo aborda o problema
do desconhecimento da diversidade língua entre os utentes de diferentes países.
A palavra galega para o felino mencionado é "gato", igual que no
Brasil. Mas nalgumas zonas da Galiza existe uma pronúncia que verifica o som do
"g" como "gh" e dá "ghato", o que, como você diz,
soa igual que a palavra "rato" pronunciada por uma pessoa do Brasil.
Se soubermos isto, a situação colocada nesse vídeo desaparece imediatamente. Ao
sermos cientes das variantes, a confusão que pode dar-se não chega nunca ao
extremo, pois sabemos que estamos a falar com uma pessoa galega, ou portuguesa,
ou brasileira e conhecemos as suas especificidades. Um menino galego que
aprende na escola que o seu jantar é o almoço da menina brasileira nunca
chegará fora de hora a um convite. É uma questão de conhecimento mútuo, de
educação na língua comum e na diversidade sociocultural dessa língua. Acontece
o mesmo aos ingleses que vão para a Austrália ou para os Estados Unidos. E o
mundo ainda não caiu por causa disso...
GCS.: Que obras literárias e escritores de fala portuguesa lhe parecem dignos de leitura? Quais deles mais a influenciaram?
Isabel: Para uma galega que
tem de aprender a forma internacional da sua língua de maneira autodidata a
experiência de começar a ler em português é um acontecimento revelador. As pessoas
devoram os livros. Depois de mergulhar na literatura portuguesa e brasileira
que podemos conseguir fazemos as nossas escolhas. Eu fico com os Pessoas, as
Clarices, os Guimarães Rosa, mas também os Camões e as Rosálias, os Meendinhos
e as Maria Balteiras. Prefiro sempre aquela literatura que, a um tempo, é
diferente e me reconhece na língua. A fascinação é a literatura brasileira que,
redigida tão longe, consegue traçar o elo da união com o nosso mundo cá, como
quando Guimarães Rosa põe os bois a falar no seu Sagarana, ou escachamos a rir
com o Macunaíma do Mário de Andrade, que por ter ele tem até o apelido galego.
GCS.: Achei curioso o emprego que faz do @ em seus escritos. A causa
feminista também está no centro de seus interesses. Qual a situação da mulher
dentro de sua cultura? Há algum dispositivo legal parecido com a nossa Lei
Maria da Penha?
Isabel:
Os movimentos à procura de
igualdade e liberdade de género têm experimentado o uso de diferentes signos
linguísticos para suprimir, no possível, a dualidade terrível (o/a) que
construiu a nossa língua. Em português não temos artigo neutro como sim têm o
inglês e o alemão, e isso é um problema grave na hora de abordar a linguagem
inclusiva. O arroba -@- é, dos elementos disponíveis (x, a/o, e), um dos que
mais gosto, por representar os dous géneros num signo unitário e por essa
difusão maravilhosa que tem experimentado graças à Internet. Mas também gosto
desse -e, que por não significar nenhum género concita todos os géneros
possíveis e a curiosidade de todes.
A situação da mulher na
cultura galega é, para mim, a da vivência de um patriarcado brutal misturada
com a reminiscência de um passado longínquo onde a mulher era a fonte de poder.
O crescimento urbano e a sua estranha relação com o mundo rural, os mundos do
mar e do campo, a cultura tradicional afastada por uma modernidade incompleta e
preconceituosa, os meios de comunicação imediatos e a sua situação quase
colonial, o alheamento em geral das pessoas galegas do seu senso comum e
próprio, o machismo assassino, fazem com que as mulheres atravessem situações
dramáticas. Em 2016 registaram-se na Galiza mais de 5.600 denúncias por
violência machista. Desde 2004 no Reino da Espanha há uma lei contra a violência
chamada "de género", mas nem o governo espanhol nem o galego colocam
os meios nem dão a atenção necessária para abordar o problema. A revisão e
melhora da lei, dados mais transparentes e maior informação sobre o estado da
situação são reclamações constantes do movimento feminista.
GCS: Com base na situação política da Galiza, comente o pensamento de Max Weinreich: “Uma língua é um dialeto com
exército e marinha."
Isabel:
O poder político faz uso das
línguas para incutir nas populações o seu discurso. Na península ibérica
historicamente o poder político dividiu-se em dous polos que foram
representados pela língua castelhana e a língua portuguesa. Nos territórios
abrangidos pelo poder que tomou o castelhano como língua veicular
encontravam-se outras nações com língua própria, como catalães e bascos, que
carecendo de exército e marinha, viram dramaticamente reprimida a sua evolução
moderna. Além destes, os galegos, de língua portuguesa, ficamos da parte de
fora do poder político que tomou o português como língua veicular e, como
catalães e bascos, também sofremos o abafamento da parte espanhola. O processo
de assimilação do português da Galiza ao castelhano está em andamento. O
reintegracionismo é a única oposição a este processo político-linguístico que
procura a dissolução ou desaparição das outras línguas nativas do território do
Reino da Espanha. Na península somente Portugal, hoje república independente, a
pequena Andorra e o anglófono Gibraltar, do Reino Unido, mantêm a soberania
suficiente para não ver em perigo a sua integridade linguística.
GCS. Você
também é exímia em outro tipo de linguagem, a musical. Fale-nos deste dom
extraordinário e de como o tem utilizado para difundir a cultura galega.
Isabel:
A música pode ser um dom, mas
há que o ganhar a pulso. De regra, só uma percentagem muito pequena é de
talento entanto que a maior parte é de trabalho. Eu aprendi a ler e tocar
guitarra (violão) com o meu pai, que era acordeonista e aprendeu música no
Brasil, e meu irmão mais velho, guitarrista amador e cantor. Depois disso segui
a carreira no conservatório e, após tocar durante muitos anos o reportório
canônico agora dedico-me a interpretar a música galega para guitarra que fui
descobrindo nas minhas pesquisas. Também preparo uma tese de doutoramento sobre
a guitarra na Galiza, que me está a proporcionar as chaves para compreender o
que aconteceu com a música galega ao longo da nossa história.
GCS.: Diga-nos, em generosas palavras finais, os grandes sonhos que tem
para sua gente e para o idioma galego; dê-nos dicas de filmes; exponha algum
pensamento marcante e deixe-nos links para suas produções pessoais e sites que
julga interessantes.
Isabel: O sonho que tenho para a minha terra é o mesmo que tenho
para o resto do mundo: sermos capazes de construir vida digna de ser vivida.
Vida liberta de poderes opressivos. Vida humana e humanizadora. Na Galiza isso
passa, entre outras muitas cousas, por levar a nossa língua, o português
galego, ao mais alto nível de desenvolvimento. A língua somos nós, cuidemo-nos.
Um filme: Fronteiras, de Rubén
Pardiñas (2007).
Um pensamento marcante: A
verdade é sempre revolucionária (Gramsci).
Um disco (o meu): A viola no
século XIX: Música de salão na Madeira.
Sites interessantes:
Cantigas Medievais
Galego-Portuguesas: http://cantigas.fcsh.unl.pt/
Portal Galego da Língua: http://pgl.gal/
Através Editora: http://www.atraves-editora.com/
Academia Galega da Língua
Portuguesa: https://www.academiagalega.org/
Diário Liberdade: https://gz.diarioliberdade.org/
Novas da Galiza: http://www.novas.gal/hemeroteca.htm
O Dicionário Estraviz, dicionário feito pelo lexicógrafo galego Isaac Alonso Estraviz, é um dos mais completos em língua portuguesa disponível gratuitamente na rede:
http://www.estraviz.org/
Novas da Galiza: http://www.novas.gal/hemeroteca.htm
O Dicionário Estraviz, dicionário feito pelo lexicógrafo galego Isaac Alonso Estraviz, é um dos mais completos em língua portuguesa disponível gratuitamente na rede:
http://www.estraviz.org/
Espetacular essa entrevista, quantas informações interessantes. E essa música? Meu Deus, um conforto para a alma!
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