terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

OS FERREIRAS ANTES DO CANGAÇO - SECA DE QUINZE (Por Jair Eloi de Souza)

 


OS FERREIRAS ANTES DO CANGAÇO - SECA DE QUINZE

O clã dos Ferreiras de índole provinciana, sitiante na expressão mais típica, exímios no adestramento de poldros e burro brabo, no pastoreio dos gados e manejo das miunças, também oficiava na almocrevaria, principalmente Lampião que passara pelo desasnamento do mestre-escola, pegando um adjutório da Escola na Fazenda Serra Vermelha , um salto de ema para a Passagem das Pedras de José Ferreira da Silva.
A ocorrência de batizados, a celebração dos festejos tradicionais, os “toques” puxados à concertina ou fole de oito baixos, promoviam a convergência dos ramos familiares de Dona Maria Lopes e de José Ferreira da Silva. Esse o mundo de Virgulino Ferreira. Na devastadora seca de l915, completa este 17 anos de idade, faz alistamento eleitoral e vota pela primeira vez. Essa foi uma era de travessia difícil. A quadra chuvosa não se apresentou, frustração de safra e os campos se encheram de carcaças de gado, ao sertanejo restava como último gesto desatar as amarras dos chocalhos e estender o olhar pesaroso de derrota para o animal que jazia. As cacimbas no alvéolo do Riacho São Domingos, que rasga a fazenda Passagem das Pedras, se enterravam de chão adentro. Sobrosso não só de mortandade dos animais, mas, também dos viventes dos sertões do Pajeú. Grassara uma primavera seca, ardente, voraz, sem colheita de algodão naquele ano.
Por esses tempos corria notícia de atuação de grupos isolados de cangaceiros. Havia quase um ano, o lendário Antônio Silvino deposto as armas. Estava a cumprir as penas de seus crimes na Casa de Detenção, no Recife. Fato que alimentava a verve de vates cantando as suas façanhas, em versos nas feiras de todos os quadrantes do Cinzento Nordestino.
Segundo nossos ancestrais, o xique-xique era consumido em larga escala, a polpa de macambira ribeirinha, servia para fazer cuscuz n’água e sal. As aves da caatinga como o urubu, o carcará, faziam a festa no carniçal e nos animais que viviam os últimos estertores, tendo aqui e acolá de forma permeada, o aparecimento de seriemas de ecos secos e babélicos, a flagelar répteis da flora espinhenta, como o cascavel, a jiboia, e alguns lagartos de pequeno porte.
Nessa era tinham lugar as rezações noturnas em casas dos mais devotos, espécies de beatos paroquianos, homens adereçados de rosários, muitos deles trazidos do Juazeiro, tidos na comunidade como possuidores de fé diferenciada, em razão de preconizarem como adivinhos fatos do futuro, como seca, enchentes, pragas, doenças epidêmicas em animais e nas gentes desvalidas daqueles sertões bravios. As rixas por vezes dissipadas por juízes arbitrais, papel desempenhado pelos valentões, ou por coronéis de bom senso, usando da resina da amizade com as partes em conflito, ou da força feudal, com prejuízo para o não simpatizante de sua posição política.
Não só nos Sertões do Pajeú, mas em todos os quadrantes das terras nordestinas, o sertanejo frustrara-se com os sinais que prenunciavam a quadra chuvosa. A barra quebrando , naquele ano, trouxera o mesmo sinal; o vermelhão quão lavras vulcânicas incandescentes. E o vento do norte começara a sibilar, era prova que o período invernoso havia se furtado às terras do Cinzento, não passava de permeados chuviscos coados, tocando seco na pele. O caburé de orelha, pequenino, mas, de uma simbologia ímpar para prenunciar as primeiras chuvas, quando externava o seu piado de forma incontrolável, continuava mudo. O canto choco dos anus pretos, não aparecia. As enxuís não mudaram a entrada dos seus ninhos, e suas cachopas continuavam abotoadas de mel. A velha e agourenta acauã continuava reclusa e em canto compassado, uma mudez permeada de pios tristonhos, era um mistério.
Principalmente para as gentes da caatinga, que nunca deixara de avistá-la nas tardes dezembrinas ou no quarto crescente lunar, quando em noites estreladas. A paciência se esgotava, forragens minguadas nas áreas ribeirinhas. Umbuzeiros desfolhados e sem floração, seus tubérculos secos e laxados pela ação do homem sedento. As festas natalinas já não ocorreram, ficaram nos limites de rezações suplicantes. As águas de março e o abril chuvoso eram uma visão tão longínqua e imaginária, que só as lágrimas de mulheres e homens famintos, regavam o livre pensar e o longo penar. Esta a descrição dos sertões naquele ano de quinze.

Fragmentos da obra "Lampião: o Lobo do Cinzento.
Uma Saga de Violência Mítica no Nordeste Brasileiro", da autoria de Jair Eloi de Souza



Um comentário:

  1. https://www.facebook.com/joaomaria.medeirosdantas8 de fevereiro de 2022 às 05:09

    Muito bom resgate histórico com uma linguagem peculiar que só os verdadeiros sertanistas sabem fazer tão bem quanto o Dr. Jair Eloi de Souza. Parabéns também por sua lutas em favor das causas sociais, em.defesa dos mais humildes!

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