terça-feira, 14 de dezembro de 2021

O MOÍDO É GRANDE - Heraldo Lins

 


O MOÍDO É GRANDE


— Perdi a graça, disse o velho com 94 anos. 

Graça era sua esposa, Maria das Graças, falecida há pouco tempo e com pouca idade. O velho estava querendo casar-se novamente. Seu faro por mulher nova, fez-lhe mandar um mensageiro levar recados com toques amorosos para Gracinha, do outro lado do rio. Com dezenove anos ela ficou indecisa, apesar das quatro fazendas que o velho possuía. No contrato, para se habilitar a esposa do idoso, constava ser mulher ativa todos os dias, e gracinha estava pálida, anêmica, acreditava que não daria conta do recado. O velho era conhecido como o velho “cabido” do sítio Matulão. 

Por precaução, foi falar com ele levando suas outras duas irmãs mais velhas. Seriam as três a fazer-lhe companhia. Gracinha casada no papel e as outras duas na condição de assessoras para assuntos nupciais. Assim fizeram, e no mês seguinte, sem que o velho planejasse festa nem viagem de lua de mel, juntaram-se. 

As mudanças aconteceram no mesmo dia com Gracinha e as irmãs trazendo seus pertences na carroça de burro. Os pais tangeram Chá Preto e até o ajudaram na passagem do rio seco. As três donzelas, com sombrinhas as protegendo do sol, chegaram na hora do almoço. O velho tinha mandado matar o pinto cego e tirar o feijão do silo. Ainda degustaram uma rolinha de gaiola e dois preás caídos no fojo. 

Elas não sabiam se comportarem como mulheres. Muito novas e isoladas do mundo civilizado, pensavam que era só comer e dormir. Durante o dia permaneceram arredias e à noite estavam no quarto preparado com três camas. A presença de pit Bulls amarrados na porta era para que ninguém saísse nem entrasse no quarto. Do lado de fora um galo cantava quando ainda não se escutava nada vindo de lá de dentro. 

Os peões nesse dia tiraram folga a mando do patrão. O que se passou lá dentro chegou ao conhecimento público dois anos depois da morte do ancião. O conteúdo só foi revelado para uma revista francesa que pagou um bom cachê para as irmãs contarem. 

O que se sabe é que o velho havia feito um pacto com o além e nesses momentos tomava forma de adolescente que vagava na noite. A cada missão terminada outro entrava no corpo do velho e ele ficava em ponto de bala. Só que nessa noite, como eram três, não foi encontrado tantos jovens embriagados nas redondezas, e o velho caiu no esgotamento falecendo em seguida. Os pit bulls desapareceram assim que ele faleceu e as irmãs doaram uma das fazendas aos pais e cada uma tomou posse na sua. 

Ficaram ricas, mas sem quererem se casar, lembrando da noite atribulada com o velho a fuçar. O tempo passou e nada aconteceu digno de registro, até que Chá Preto veio a falecer. O povo da redondeza gostava muito de dramas, e atribuíram ao pobre burrinho a responsabilidade de criar algo sobrenatural. “Quebraram a cara”. As irmãs continuaram comendo preás e rolinhas durante algum tempo.  

Para que não ficasse com um final sem graça, os moradores desenterraram Chá Preto, montaram a ossada dele em cima de outro jumento, e, nas noites de lua cheia colocam gasolina debaixo do rabo de Chá Branco, lanternas na carcaça de Chá Preto e os direcionam para a cidade. A população fecha as portas com medo da assombração. 


Heraldo Lins Marinho Dantas

Natal/RN, 30.11.2021 – 07:19



2 comentários:

  1. Há sempre um grande moído
    na prosa de Heraldo Lins.
    Nem sempre é claro o sentido,
    mas não são textos chinfrins.

    Gilberto Cardoso dos Santos

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