quinta-feira, 12 de agosto de 2021

ESCAVACANDO O RELACIONAMENTO - Heraldo Lins



ESCAVACANDO O RELACIONAMENTO


Ela me liga em vídeo falando das suas saudades. Diz que o apartamento em que morávamos está em seu poder. Não conseguiu sobreviver sem comprá-lo. Diz que lembra da parede que pintei para fazer seus gostos, e chora toda vez que guarda as taças de vinho que usávamos no Natal. 


Fico recordando os bons tempos em que ela estagiava. Sonhava em ser feliz, mas não percebia que já era. Pegava dois metrôs e chegava cansada em casa me pedindo para massagear seus pés. Lembrou-me da viagem que fizemos no submarino do seu pai. Diz que ama as coisas que lembra nossa história. Todo semestre fazíamos os cálculos se ela poderia permanecer na faculdade. Dinheiro curto de apenas seis meses de comprimento. O pai dela era sovina. 


Eu tinha essa vocação de massagear seus pés. Gostava também de levá-la ao cinema. Foi na loja ao lado que comprou o chocolate que estava comendo enquanto ligava para mim. Gargalhava com meu jeito de pronunciar jujuba. 


Ela pensava em ser alguém no mundo da alta costura desde o tempo que quebrei o cubo mágico de tanto tentar. Eu a apoiava quando costurava minhas meias. Contava-lhe histórias para entretê-la. Era uma forma de pagamento. Diz que os filmes não têm mais graça. Aprendeu a analisá-los como eu fazia. Assiste-os com o olhar do diretor, do roteirista. Não consegue assisti-los sem uma visão crítica. 


Morávamos em frente à torre Eiffel. Digo a ela que estou jogando milho aos pombos e observando a águia atacá-los. Estou conivente com essa fera que me usa para aliciar pássaros para o seu almoço. Ela pede que lhe mostre. Obedeço. Diz que o seu ex-marido queria que ela fosse para a rua se prostituir. Era um gavião tomando conta da pombinha, diz com a boca cheia de chocolate e rindo.  


Outras pessoas que estiveram em sua casa em Nápoles saíram dizendo que é uma louca. Não acho. Apenas pensa fora do quadrado. Seu quarto ano consecutivo da mais respeitada no mundo da moda, proporciona essa liberdade de ser excêntrica. Nas minhas lembranças a vejo no telhado em busca de inspiração. Junto à janela, eu tocava violão querendo encontrar a nota para o disco.   


Fala da sua vida atual nos meandros da indústria da moda. Nem quero saber. Diz que sou ingrato. Mostra-me o armário escuro onde se escondia para fugir das depressões. Nosso laboratório de experiências familiares nos levou a construir uma comunidade de sete casais, cada dia havia trocas. Ideia dela. Embarquei em muitas outras por ela orquestradas. Está lendo meu livro que ela mesma escreveu. Diz que sou o autor. Nem sei o que conta. Diverte-se reescrevendo-o diariamente. Mostra-me na parede, uma fotografia escalando o Everest. Dali partiu para a Turquia. Vestiu princesas e rainhas por onde andou. 


Nas cidades do mundo sempre há frio e fome, disse-me angustiada. Acostumou-se em ser andarilha fingindo ser pobre. Quer que eu vá morar com ela. Que eu leve minha mulher e filhos. Há lugar para todos. Sente-se só e diz que só eu a entendia. 


Derrubou uma casa para reconstruir sozinha, tijolo por tijolo, telha por telha. A essência, diz ela, está no pó. Achando graça, mostra-me uma experiência com roupa viva. Animais cobrindo as partes íntimas. Prefere coelhos embaixo e preguiça no busto. 


Lembra-me que chorei ao vê-la dando à luz no deserto do Saara. Queria sentir o mesmo que uma desamparada sente. Nossa amizade se perdeu no distanciamento dos continentes. Cada ano fico mais longe quatro centímetros dela. Nem sei quando irá ligar novamente. Alegria e sofrimento norteiam a sua vida. De mim, já disse, não espera muito. Apenas dois ouvidos para ouvi-la relembrar uma parte da sua história. 


Propõe que eu vá massagear seus pés... a ligação cai. Tento voltar o mais rápido possível, mas está bloqueado. Não vou conseguir dormir hoje, e ela sabe disso. Faz de propósito. 



Heraldo Lins Marinho Dantas 

Natal/RN, 06/08/2021 – 00:36


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