terça-feira, 12 de janeiro de 2021

SÓ EM FALAR JÁ ESTOU CANSADO - Heraldo Lins

 


SÓ EM FALAR JÁ ESTOU CANSADO

 

Lembrei-me de o homem preguiçoso. Passava fome, mas não queria trabalhar. Na comunidade todos tinham que dar sua parcela de contribuição no plantio. Como ele só consumia, resolveram enterrá-lo vivo. No caminho do cemitério um tropeiro encontrou o cortejo e quis saber de que se tratava. Sabedor do motivo, ofereceu um saco de arroz para o condenado, o que de pronto perguntou: é com casca ou sem casca? Com casca. Toque o enterro.

 

A teoria do menor esforço foi a causa principal do filósofo ir olhar a floresta em vez de cortá-la. Perguntaram-lhe o porquê de ir toda tarde observar a mata, ele respondeu: para entender o conceito vigente. Enquanto eu olho a floresta sou taxado de preguiçoso, outros que passam o dia destruindo-a são vistos como trabalhadores.

 

Esse conceito muda bastante. Assisti uma mulher sendo entrevistada na TV tendo como pauta o desaparecimento do seu marido. A repórter muito empolgada mostrava a mulher como vítima. Perguntada em que o marido dela trabalhava ela disse: trabalha com esse negócio de assalto. Ela considerava o marido trabalhador.

 

Matar os filhos deu muito trabalho a outra que sofria de depressão pós-parto. Matou os pequenos afogados na banheira. Primeiro afogou o novinho com poucos dias de nascido. Depois o maior e a do meio foi a última. Deu trabalho ser condenada. Dá trabalho ler. Dá trabalho escrever. Dá trabalho viver. Resta apenas morrer. Fulano está dando trabalho para morrer. Até na hora da morte o trabalho está presente. A outra está em trabalho de parto. Haja trabalho.

 

O mais famoso trabalhador da história foi Hércules. Ele teve doze profissões oficiais. Estava Hércules desempregado e surgiu um emprego para matar o leão de Neméia. Na verdade não era um emprego, foi um contrato assinado na caverna do tabelião. Ele foi lá e realizou a tarefa como quem toma um copo d’água. O empregador não quis pagá-lo, então Hércules tirou o couro do leão e fez um blusão. A história não conta, mas ele também era alfaiate. Hércules saiu de lá e foi trabalhar matando serpentes de nove cabeças. Se tivesse oito cabeças ele rejeitava. Tinha que ser nove. Não podia ser dez. Era nove, eu já disse.  Só emprego difícil. Matar serpente com uma só cabeça já é complicado, imaginem com nove!? Mas Hércules bem tranquilamente como quem toma um copo de suco de maracujá, bocejou enquanto assassinava a Hidra de Lerna. Claro que teve ajuda do seu sobrinho Iolau, mas quem ficou com a fama foi só Hércules. Até hoje essa questão rola na justiça para reconhecer o trabalho de Iolau. Hércules entediado de tanto matar resolveu capturar vivo o javali de Erimanto. Bicho feroz mordia até tempestade em dia de vento, ou melhor, podia ser vento em dia de tempestade que ele mordia do mesmo jeito. Depois de encurralá-lo Hércules ofereceu algodão doce e o bicho ficou manso. Ele era, acima de tudo, estrategista. Um dos trabalhos que deu mais trabalho foi a captura da Corça Cerinéia. Ele passou um ano correndo atrás dela. Só conseguiu capturá-la na travessia de um rio. Eu fico imaginando uma pessoa correndo durante um ano. Comia correndo, tomava água correndo, fazia o número um e o dois na carreira. Acredito que ele corria até dormindo. Hércules era fogo. Muito trabalhador.

 


Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 04/01/2021 – 22:04

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