domingo, 20 de dezembro de 2020

PRISÃO CORPORAL - Heraldo Lins

 


PRISÃO CORPORAL

 

Estou preso. Minha cela está com uma pedra preta no chão, e no telhado há pelos esbranquiçados que teimam em cair. As janelas estão ficando borradas e as entradas laterais não captam ruídos como antigamente. A minha pena é cuidar dela com o maior esmero. Tento fazer o melhor. Diariamente utilizo água, xampu e sabonete para mantê-la higienizada. Uma toalha conclui a limpeza. Duas vezes ao dia retiro o lixo, e de hora em hora enxugo as infiltrações. Dá muito trabalho. No início havia alguém para me ajudar. Hoje, tenho que ajudar outras pessoas a cuidar das delas. Nos identificamos pela cela que temos. Há celas arredondadas e de boa aparência. Outras celas são estufadas na frente, quadradas de lado, encurvadas atrás, com a porta sem grade fechando-se e abrindo-se descontroladamente. Em cada cela há um comando que nem sempre está satisfeito com o que vê ao seu redor. Quer fazer reforma a todo instante. Diminue a quantidade de matéria que é colocada dentro, manda a cela pedalar, correr, pular, dançar.... Vejo muitas celas pelas ruas e estradas obedecendo ao comando esportivo. Alguns comandos tentam se ver livre da cela, mas ela não se desgruda. Outros se unem de tal forma que procuram pedreiros para melhorar a aparência. Os pedreiros com bisturis nas mãos isolam a cela e começam a reforma. Tiram a crosta impregnada nas paredes internas, esticam o reboco, colocam silicone na fachada e reforçam o guichê com ácido hialurônico. Fica muito bom, porém a manutenção é caríssima. Nem sempre a detenta tem condições de embelezar a sua cela. Os projetos de construção são divididos em duas etapas. Inicialmente a cela é feita sem teto e grades. Com o passar do tempo o telhado vai sendo colocado e as grades apontando de dentro para fora nas paredes dos guichês. Quando o comando se dar conta, já está aprisionado. Aí gera a revolta. O comando sem uma estabilidade emocional adequada tenta destruir a cela. Ele sabe que se ela for destruída e irá junto. Nenhum tijolo será aproveitado. E isso que faz com que o comando procure ser tolerante. Mas o destino de cada cela é deixar de existir. Depois de um certo tempo, começa a cair o reboco, as grades não se sustentam no guichê e as paredes tremem sob a brisa matutina. Neste estágio o teto fica cheio de goteiras deixando passar pingos de esquecimento que molham o sistema autônomo. Depois que o sistema é inundado pelo líquido, há uma perda da aderência da massa que une os tijolos. A fragilidade das paredes tende a fazer a cela desmoronar-se por inteiro. O comando não tendo quem o obedeça, foge deixando a metralha para o coveiro enterrar.   

 

 

Heraldo Lins Marinho Dantas (arte-educador)

Natal/RN, 16/12/2020

showdemamulengos@gmail.com

84-99973-4114

 

 

 

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários com termos vulgares e palavrões, ofensas, serão excluídos. Não se preocupem com erros de português. Patativa do Assaré disse: "É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada”