PARTES ANTERIORES:
III
Nos
arredores da cidade se articulava um movimento. Centenas de homens sem líder
procuravam uma maneira de conseguir comida. A cidade já não podia mais dar as
migalhas que até então tinha dado a quase todos eles. Não havia mais como
contornar a situação e, exaltados, boa parte dos homens procurava a forma mais
fácil de conseguir comida. O Homem do Cavalo, na sua busca para encontrar
alguém conhecido, segue dois homens e acaba chegando também ao local. A figura
estranha chamou a atenção de todos.
— Lovado
seje nosso sinhô Jesus Cristo!
Um coro de
vozes sonolentas — é assim que as pessoas falam quando estão com fome —
respondeu o “prá sempre seje lovado” que mal se ouviu. Apeou-se, ficou de
cócoras e perguntou:
— Qué qui
vocês tão fazendo aqui?
— Tamo
querendo cumida. Tá todo mundo cum fome.
— Intonse,
chegou mais um. Num tem jeito não. Na cidade os home num tem mais tomém o qui
cumê e nois num tem mais salução, vamo morrê de fome.
— Só tem
um jeito: é assartar os armazém.
— Mais os
donos num tem curpa disso. É o dinheiro deles. É o qui eles tem prá sustança da
famia. O guverno é que divia de mandá cumida pra nois.
O Homem do
Cavalo aos poucos ia assumindo a liderança do grupo que a cada minuto recebia
mais um camponês. Calados e pensativos todos convergiam seus olhares para o
menor movimento dos olhos ou da boca dele. Não se sabia explicar, mas o Homem
do Cavalo tinha um carisma. Certamente pela sua mansidão e segurança no falar ou
talvez pelos olhos vivos e os gestos marcantes, com força, com vigor mesmo que
estivesse com fome.
O pesado
corpo levantou-se mansamente, com gestos perfeitos e uma rigidez
impressionante. Ninguém podia imaginar que aquele homem estivesse há alguns
dias sem comer.
— Tô cum
fome derna da sumana passada. O último xique-xique dividi cum meus fios teuça
feira, antonte.
Os outros
esperavam mais uma palavra dele. Furiosos pela falta de comida só pensavam em
assaltar os armazéns da Ferreira Itajubá. O Homem do Cavalo fez várias
caminhadas de um lado para outro debaixo daquele grande e seco umbuzeiro.
Passadas algumas horas a cidade se descortinava ao meio dia com os estudantes
começando o burburinho do vai-e-vem a procura de colegas e das salas de aulas.
Os homens viam todo aquele movimento.
— Tão
vendo aqueles minino? Fizeru um’a rivulução onte a noite em frente a cadeia.
São o cão, esses mulestados, pode inté sê qui eles ajude a nois. Tem um tá de
Zé do Bode, cabra macho dos seiscentos mil diabo. Apois ele brigou inté cum o
capitão coroné seu delegado. Vamo lá. Vamo cunversá cum eles e mostrá nossa situação.
**********
Na esquina
de Dona Noca, os estudantes da noite estavam a postos. A velha e brava senhora
fazia polis sem igual, melhor que os de Pedro de Tico com sua geladeira a gás
novinha em folha. O
sol causticante contrastava com a sombra e o vento encanado do outro lado da
rua, passando por trás da sinuca de seu Henrique. O poli refrescava as idéias
da rapaziada.
Na verdade
aquela reunião diária tinha um sentido: ver a saia azul das meninas da Escola
Normal cobrir a blusa branca na entrada da esquina. Curioso é que todas elas
sabiam do vento “traiçoeiro” mas raramente tomavam a providência de segurar a
saia, coisa que jamais os estudantes
souberam explicar. Mas Zé do Bode dizia que as mulheres sempre têm esses
mistérios e por mais que tentemos entendê-las jamais vamos conseguir.
Zé do Bode
não perdia uma tarde na esquina de dona Noca com seus velhos amigos João Bosco,
Márcio Marques, Manu e mais alguns chegados a ver frente ou fundo de calcinhas
com aquela “carreira” de botões do lado esquerdo. A conversa geralmente girava
em torno da poesia de Márcio ou da paixão eterna de João Bosco, os dois,
infelizmente mortos tragicamente.
Rompe
ferro costumava dizer que naquela esquina estava o retrato fiel da quantidade
de empregos que a cidade proporcionava aos jovens.
— Todos
vagabundos registrados na CIT — Companhia Inimiga do Trabalho.
Zé do Bode
estava sempre com um violão debaixo do braço para acompanhar as canções, sempre
em castelhano, que João Bosco costumava cantar. Era o ensaio da seresta da
noite que se prolongaria madrugada a dentro disputada com outros grupos
formados por José Domingos, Dinarte, Hildebrando, Breno, Deusdedith, e os
demais chegados a boemia.
Entre um
vento forte e outro, uma subida de saia, o pessoal se deliciava com as duas
coisas: as calcinhas das meninas e os polis de dona Noca e discutiam quem teria
direito a uma serenata a noite.
Mas
naquela dia o clima era diferente. O pessoal mal olhava uma ou outra calcinha.
A preferência só recaia para as mais esperadas, as mais boazudas. A conversa
girava em torno de uma possível invasão na cidade. Alguns aproveitavam para
descer o malho nas promessas feitas no comício da noite passada, como sempre,
cheio de demagogias.
A
construção do açude passava a ser uma grande polêmica estudantil. Uns contra
pela localização do futuro mundo de água. Outros a favor pela criação de
empregos. E os indiferentes. Embora os últimos fossem poucos o pessoal dava
sempre ouvidos a qualquer tipo de opinião. Todos tinham direito a voz naquela
esquina democrática.
— Rapaz,
esse negócio aqui vai pegar fogo. Dizem que está cheio de homens lá no
umbuzeiro de “seo” Manoel esperando só a hora para atacarem a cidade.
A frase
foi o bastante para que o pessoal passasse a discutir a validade ou não de uma
invasão e o que poderia ser feito para evitar que isso acontecesse. Zé do Bode
era de acordo que houvesse a invasão, acreditando ser a maneira mais correta
para chamar a atenção do Governo e assim as providências virem imediatamente. O
grupo não concordava, afinal o pessoal já estava no tempo da “base do amor”
onde tudo se resolveria mais pacificamente e sem criar problemas mais sérios.
Aos poucos
Zé do Bode foi se dobrando diante da opinião geral e, todos de acordo, passaram
a raciocinar em termos de como ajudar os homens que estavam no umbuzeiro. Iriam
até o padre, o delegado, o juiz e o prefeito. Sairiam nas ruas angariando
comida; enquanto isso outros iriam até o local e procurariam convencer aos
camponeses que a violência não levaria a nada e, quando já estivessem de posse
dos alimentos para ser entregues, o prefeito aproveitaria a oportunidade para
garantir que teria uma palavra oficial do Governo no dia seguinte, pela manhã.
Tudo
estava arquitetado. O grupo se dividiu em dois. Um liderado por Zé do Bode, que não tinha
muita experiência em pedir, se encaminhou para o lugar onde os homens estavam
passivos diante da presença do Homem do Cavalo; o outro saiu a procura das
casas do prefeito, do juiz, do delegado e do padre. Como tinham mais intimidade
com o padre trataram de ir primeiro a sua casa, de lá sairiam, já com ele
“debaixo do braço”, para a casa dos outros.
Ao
chegaram na casa do vigário encontraram-no dormindo em sua cadeira de balanço.
Era um homem gordo, branco, faces coradas e falava alto quando necessário.
Sempre estava metido em sua batina preta, que mesmo acumulando muito calor não
conseguia acabar com a redonda barriga do cura. Na casa os estudantes tinham
liberdade suficiente para, ao chegarem a porta, entrar sem pedir licença ou
bater palmas anunciando-os. Naquele barulho de noviços em revolução, acordaram
o padre antes mesmo de chegarem a ventilada sala de engenhosidade dele próprio
para os dias de maior calor. Levantou-se assustado, certamente estava sonhando
com os camponeses invadindo a cidade.
— Vocês
estão loucos? O que foi que aconteceu para virem me acordar em hora de sesta?
Não sabem que meu sono a esta hora é sagrado assim como são os Santos Óleos e a
Hóstia?
No ímpeto
de comentar os últimos acontecimentos, as decisões do grupo, todos falaram ao
mesmo tempo. O padre ficava louco quando alguém queria explicar-lhe algo com
outro dando “pitaco” de lado, imagine todo o grupo falando ao mesmo tempo.
Enfurecido e bravo, quase “sai no braço” com os estudantes.
— Calma,
seus merdas, um de cada vez que aqui não é casa de sogra e quem manda sou eu.
Agora fala primeiro você e só você.
— É que
nós estamos sabendo que um grupo de homens está reunido lá no umbuzeiro para
vir atacar a cidade. Zé do Bode juntou mais um pessoal aí, turma de estudante,
e foi lá para acalmar os homens dizendo que a gente aqui falaria com Vossa
Reverendíssima...
— Vossa
Reverendíssima é a mamãezinha viu, meu filho?!
O padre
não gostava quando os estudantes o chamavam assim porque sabia que eles estavam
fazendo gozação.
— Continue
sem querer me sacanear.
— Desculpe
seu vigário, não quis ofendê-lo. Como eu ia dizendo, Zé do Bode foi lá dizer
aos homens que a gente vinha aqui na casa do senhor e iria ao juiz, o prefeito
e o delegado para arranjar comida para todo mundo.
— Vocês
são uns loucos! Como é que vão prometer uma coisa que não está ao alcance de
vocês e sim de terceiros? E agora, já que trouxeram o problema, me digam também
como é que vamos fazer para resolvê-lo? Já não bastavam os homens lá no
umbuzeiro?
Não havia
resposta para aquelas perguntas nem tampouco uma solução de imediato. Rumaram
para a casa do juiz. Àquela hora a cidade estava adormecida, exceto o barulho
de alguns estudantes no rumo da escola e mais apressados para uma prosa com as
namoradas antes do início das aulas. Curiosos os estudantes acompanharam a
pequena procissão e, aos poucos, iam se inteirando do assunto. Convidavam
outros colegas a fazerem parte da pequena comitiva na esperança de terem um
feriado forçado pelas circunstâncias. A comitiva aumentava entre as duas
esquinas do Beco das Almas que separavam a casa do padre da praça onde estava a
casa do juiz.
O padre,
aflitíssimo em ter que acordar o juiz
àquela hora sagrada para ele e tantos outros abastados da cidade, não estava
preocupado com os homens mas sim com o fato de ter que tirar do seu leito o
juiz. Como não havia outra alternativa tinha que fazê-lo. Afinal era a
segurança da cidade que estava sendo desafiada pela lei seca da fome.
O boato já
tomava corpo e como todo boato que se preza já chegava na próxima esquina com
mais ingredientes, maior. Na esquina da Cooperativa, alguns homens já estavam
reunidos discutindo as possíveis providências que o Governo tomaria.
Partidários da situação alardeavam providências que até hoje não chegaram;
contrários a facção situacionista, riam dessas providências e aproveitavam a
oportunidade para tirarem suas “casquinhas”. Nessa discussão, que não levaria a
nada exceto ao exercício da imaginação,
a atenção se voltou para o padre acompanhado pelos estudantes, sempre na frente
coçando a cabeça com os estudantes quase cochichando para não incomodarem o
raciocínio do cura.
As meninas
da Escola Normal assistiam passivas a tudo o que acontecia. Sentadas nos bancos
da praça debaixo de frondosos fixus benjamin não entendiam nada. Afinal, elas
eram educadas para ser donas de casa e nada mais além dessa atividade. Não
faziam outra coisa, exceto assistir passiva e mansamente a tudo o que acontecia
em seu redor, nas “suas barbas” como costumava dizer Rompe Ferro.
Sequer
estavam preocupadas em saber o que estava acontecendo. As conversas giravam em
torno do “sarro” da noite anterior, dos beijos mais ousados, das paixões
“arricoídas” que ainda não tinham dado certo apesar de todas as simpatias já
feitas com muita crença e fervor. Tudo isso, para elas, era mais importante do
que estarem preocupadas com invasão da cidade.
**********
Os
rapazes, tendo sempre a frente o rechonchudo padre, atravessaram a pracinha em
procissão sob o olhar inerte das meninas da Escola Normal. A porta da casa do
juiz estava com a parte de cima entreaberta. O pequeno barulho chamou a atenção
da “piniqueira”, fofoqueira juramentada, chegada a “brechar” pelas frestas da
janela para ver o movimento de moças e rapazes, veio de imediato ver o que
estava acontecendo. Era uma senhora dos seus 40 anos beirando os 50.
— O juiz
está?
—
Dormindo.
— Pois o
acorde imediatamente. Diga-lhe que é um caso de segurança nacional e que merece
a maior urgência.
Entre
sonolento e com cara de raiva pelo desaforo de ter sido acordado por aqueles
insignificantes estudantes, e que só lhe davam trabalho, o juiz chegou-se a
porta. Eram uns cabeças ocas e que só pensavam em sacanagem e perturbar a
ordem, mas o padre estava com eles e, como toda cidade do interior, o vigário
sempre merece respeito. Não tinha outra alternativa e já que o chamamento dizia
respeito a segurança nacional tinha que ser atendido a qualquer custo.
Chegou-se
à porta da casa.
— Entre
seu vigário mas os rapazes gostaria que ficassem do lado de fora. Não quero
barulho aqui dentro porque meu filho pequeno está dormindo.
O vigário
adentrou a casa e iniciou sua fala dizendo o problema criado por Zé do Bode e
sua turma e que, aquela altura, não havia muitas alternativas. Os dois saíram
da sala e foram para a calçada onde um número bem maior de estudantes os
esperavam impacientes. Teriam que ir de imediato à casa do prefeito para depois
saírem a procura do delegado. O juiz, que havia chegado há pouco tempo, ainda
não estava acostumado com a falta de telefone e achava horrível quando tinha
que caminhar. Não podia pegar seu carro, um dos poucos da cidade, porque tinha
medo que os estudantes quisessem ir nele o que seria um absurdo e, certamente,
o veículo se quebraria com tanto peso.
**********
ACOMPANHE A ÍNTEGRA DA SAGA DE OS ESFOMEADOS, NO SEGUINTE LINK:
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