quarta-feira, 22 de julho de 2015

OS ESFOMEADOS, parte 3 - Rosemilton Silva

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III

       Nos arredores da cidade se articulava um movimento. Centenas de homens sem líder procuravam uma maneira de conseguir comida. A cidade já não podia mais dar as migalhas que até então tinha dado a quase todos eles. Não havia mais como contornar a situação e, exaltados, boa parte dos homens procurava a forma mais fácil de conseguir comida. O Homem do Cavalo, na sua busca para encontrar alguém conhecido, segue dois homens e acaba chegando também ao local. A figura estranha chamou a atenção de todos.
       — Lovado seje nosso sinhô Jesus Cristo!
       Um coro de vozes sonolentas — é assim que as pessoas falam quando estão com fome — respondeu o “prá sempre seje lovado” que mal se ouviu. Apeou-se, ficou de cócoras e perguntou:
       — Qué qui vocês tão fazendo aqui?
       — Tamo querendo cumida. Tá todo mundo cum fome.
       — Intonse, chegou mais um. Num tem jeito não. Na cidade os home num tem mais tomém o qui cumê e nois num tem mais salução, vamo morrê de fome.
       — Só tem um jeito: é assartar os armazém.
       — Mais os donos num tem curpa disso. É o dinheiro deles. É o qui eles tem prá sustança da famia. O guverno é que divia de mandá cumida pra nois.
       O Homem do Cavalo aos poucos ia assumindo a liderança do grupo que a cada minuto recebia mais um camponês. Calados e pensativos todos convergiam seus olhares para o menor movimento dos olhos ou da boca dele. Não se sabia explicar, mas o Homem do Cavalo tinha um carisma. Certamente pela sua mansidão e segurança no falar ou talvez pelos olhos vivos e os gestos marcantes, com força, com vigor mesmo que estivesse com fome.
       O pesado corpo levantou-se mansamente, com gestos perfeitos e uma rigidez impressionante. Ninguém podia imaginar que aquele homem estivesse há alguns dias sem comer.
       — Tô cum fome derna da sumana passada. O último xique-xique dividi cum meus fios teuça feira, antonte.
       Os outros esperavam mais uma palavra dele. Furiosos pela falta de comida só pensavam em assaltar os armazéns da Ferreira Itajubá. O Homem do Cavalo fez várias caminhadas de um lado para outro debaixo daquele grande e seco umbuzeiro. Passadas algumas horas a cidade se descortinava ao meio dia com os estudantes começando o burburinho do vai-e-vem a procura de colegas e das salas de aulas. Os homens viam todo aquele movimento.
       — Tão vendo aqueles minino? Fizeru um’a rivulução onte a noite em frente a cadeia. São o cão, esses mulestados, pode inté sê qui eles ajude a nois. Tem um tá de Zé do Bode, cabra macho dos seiscentos mil diabo. Apois ele brigou inté cum o capitão coroné seu delegado. Vamo lá. Vamo cunversá cum  eles e mostrá nossa situação.

     **********

       Na esquina de Dona Noca, os estudantes da noite estavam a postos. A velha e brava senhora fazia polis sem igual, melhor que os de Pedro de Tico com sua geladeira a gás novinha em folha. O sol causticante contrastava com a sombra e o vento encanado do outro lado da rua, passando por trás da sinuca de seu Henrique. O poli refrescava as idéias da rapaziada.
       Na verdade aquela reunião diária tinha um sentido: ver a saia azul das meninas da Escola Normal cobrir a blusa branca na entrada da esquina. Curioso é que todas elas sabiam do vento “traiçoeiro” mas raramente tomavam a providência de segurar a saia,  coisa que jamais os estudantes souberam explicar. Mas Zé do Bode dizia que as mulheres sempre têm esses mistérios e por mais que tentemos entendê-las jamais vamos conseguir.
       Zé do Bode não perdia uma tarde na esquina de dona Noca com seus velhos amigos João Bosco, Márcio Marques, Manu e mais alguns chegados a ver frente ou fundo de calcinhas com aquela “carreira” de botões do lado esquerdo. A conversa geralmente girava em torno da poesia de Márcio ou da paixão eterna de João Bosco, os dois, infelizmente mortos tragicamente.
       Rompe ferro costumava dizer que naquela esquina estava o retrato fiel da quantidade de empregos que a cidade proporcionava aos jovens.
       — Todos vagabundos registrados na CIT — Companhia Inimiga do Trabalho.
       Zé do Bode estava sempre com um violão debaixo do braço para acompanhar as canções, sempre em castelhano, que João Bosco costumava cantar. Era o ensaio da seresta da noite que se prolongaria madrugada a dentro disputada com outros grupos formados por José Domingos, Dinarte, Hildebrando, Breno, Deusdedith, e os demais chegados a boemia.
       Entre um vento forte e outro, uma subida de saia, o pessoal se deliciava com as duas coisas: as calcinhas das meninas e os polis de dona Noca e discutiam quem teria direito a uma serenata a noite.
       Mas naquela dia o clima era diferente. O pessoal mal olhava uma ou outra calcinha. A preferência só recaia para as mais esperadas, as mais boazudas. A conversa girava em torno de uma possível invasão na cidade. Alguns aproveitavam para descer o malho nas promessas feitas no comício da noite passada, como sempre, cheio de demagogias.
       A construção do açude passava a ser uma grande polêmica estudantil. Uns contra pela localização do futuro mundo de água. Outros a favor pela criação de empregos. E os indiferentes. Embora os últimos fossem poucos o pessoal dava sempre ouvidos a qualquer tipo de opinião. Todos tinham direito a voz naquela esquina democrática.
       — Rapaz, esse negócio aqui vai pegar fogo. Dizem que está cheio de homens lá no umbuzeiro de “seo” Manoel esperando só a hora para atacarem a cidade.
       A frase foi o bastante para que o pessoal passasse a discutir a validade ou não de uma invasão e o que poderia ser feito para evitar que isso acontecesse. Zé do Bode era de acordo que houvesse a invasão, acreditando ser a maneira mais correta para chamar a atenção do Governo e assim as providências virem imediatamente. O grupo não concordava, afinal o pessoal já estava no tempo da “base do amor” onde tudo se resolveria mais pacificamente e sem criar problemas mais sérios.
       Aos poucos Zé do Bode foi se dobrando diante da opinião geral e, todos de acordo, passaram a raciocinar em termos de como ajudar os homens que estavam no umbuzeiro. Iriam até o padre, o delegado, o juiz e o prefeito. Sairiam nas ruas angariando comida; enquanto isso outros iriam até o local e procurariam convencer aos camponeses que a violência não levaria a nada e, quando já estivessem de posse dos alimentos para ser entregues, o prefeito aproveitaria a oportunidade para garantir que teria uma palavra oficial do Governo no dia seguinte, pela manhã.
       Tudo estava arquitetado. O grupo se dividiu em dois. Um liderado por Zé do Bode, que não tinha muita experiência em pedir, se encaminhou para o lugar onde os homens estavam passivos diante da presença do Homem do Cavalo; o outro saiu a procura das casas do prefeito, do juiz, do delegado e do padre. Como tinham mais intimidade com o padre trataram de ir primeiro a sua casa, de lá sairiam, já com ele “debaixo do braço”, para a casa dos outros.
       Ao chegaram na casa do vigário encontraram-no dormindo em sua cadeira de balanço. Era um homem gordo, branco, faces coradas e falava alto quando necessário. Sempre estava metido em sua batina preta, que mesmo acumulando muito calor não conseguia acabar com a redonda barriga do cura. Na casa os estudantes tinham liberdade suficiente para, ao chegarem a porta, entrar sem pedir licença ou bater palmas anunciando-os. Naquele barulho de noviços em revolução, acordaram o padre antes mesmo de chegarem a ventilada sala de engenhosidade dele próprio para os dias de maior calor. Levantou-se assustado, certamente estava sonhando com os camponeses invadindo a cidade.
       — Vocês estão loucos? O que foi que aconteceu para virem me acordar em hora de sesta? Não sabem que meu sono a esta hora é sagrado assim como são os Santos Óleos e a Hóstia?
       No ímpeto de comentar os últimos acontecimentos, as decisões do grupo, todos falaram ao mesmo tempo. O padre ficava louco quando alguém queria explicar-lhe algo com outro dando “pitaco” de lado, imagine todo o grupo falando ao mesmo tempo. Enfurecido e bravo, quase “sai no braço” com os estudantes.
       — Calma, seus merdas, um de cada vez que aqui não é casa de sogra e quem manda sou eu. Agora fala primeiro você e só você.
       — É que nós estamos sabendo que um grupo de homens está reunido lá no umbuzeiro para vir atacar a cidade. Zé do Bode juntou mais um pessoal aí, turma de estudante, e foi lá para acalmar os homens dizendo que a gente aqui falaria com Vossa Reverendíssima...
       — Vossa Reverendíssima é a mamãezinha viu, meu filho?!
       O padre não gostava quando os estudantes o chamavam assim porque sabia que eles estavam fazendo gozação.
       — Continue sem querer me sacanear.
       — Desculpe seu vigário, não quis ofendê-lo. Como eu ia dizendo, Zé do Bode foi lá dizer aos homens que a gente vinha aqui na casa do senhor e iria ao juiz, o prefeito e o delegado para arranjar comida para todo mundo.
       — Vocês são uns loucos! Como é que vão prometer uma coisa que não está ao alcance de vocês e sim de terceiros? E agora, já que trouxeram o problema, me digam também como é que vamos fazer para resolvê-lo? Já não bastavam os homens lá no umbuzeiro?
       Não havia resposta para aquelas perguntas nem tampouco uma solução de imediato. Rumaram para a casa do juiz. Àquela hora a cidade estava adormecida, exceto o barulho de alguns estudantes no rumo da escola e mais apressados para uma prosa com as namoradas antes do início das aulas. Curiosos os estudantes acompanharam a pequena procissão e, aos poucos, iam se inteirando do assunto. Convidavam outros colegas a fazerem parte da pequena comitiva na esperança de terem um feriado forçado pelas circunstâncias. A comitiva aumentava entre as duas esquinas do Beco das Almas que separavam a casa do padre da praça onde estava a casa do juiz.
       O padre, aflitíssimo  em ter que acordar o juiz àquela hora sagrada para ele e tantos outros abastados da cidade, não estava preocupado com os homens mas sim com o fato de ter que tirar do seu leito o juiz. Como não havia outra alternativa tinha que fazê-lo. Afinal era a segurança da cidade que estava sendo desafiada pela lei seca da fome.
       O boato já tomava corpo e como todo boato que se preza já chegava na próxima esquina com mais ingredientes, maior. Na esquina da Cooperativa, alguns homens já estavam reunidos discutindo as possíveis providências que o Governo tomaria. Partidários da situação alardeavam providências que até hoje não chegaram; contrários a facção situacionista, riam dessas providências e aproveitavam a oportunidade para tirarem suas “casquinhas”. Nessa discussão, que não levaria a nada exceto ao  exercício da imaginação, a atenção se voltou para o padre acompanhado pelos estudantes, sempre na frente coçando a cabeça com os estudantes quase cochichando para não incomodarem o raciocínio do cura.
       As meninas da Escola Normal assistiam passivas a tudo o que acontecia. Sentadas nos bancos da praça debaixo de frondosos fixus benjamin não entendiam nada. Afinal, elas eram educadas para ser donas de casa e nada mais além dessa atividade. Não faziam outra coisa, exceto assistir passiva e mansamente a tudo o que acontecia em seu redor, nas “suas barbas” como costumava dizer Rompe Ferro.
       Sequer estavam preocupadas em saber o que estava acontecendo. As conversas giravam em torno do “sarro” da noite anterior, dos beijos mais ousados, das paixões “arricoídas” que ainda não tinham dado certo apesar de todas as simpatias já feitas com muita crença e fervor. Tudo isso, para elas, era mais importante do que estarem preocupadas com invasão da cidade.

          **********

       Os rapazes, tendo sempre a frente o rechonchudo padre, atravessaram a pracinha em procissão sob o olhar inerte das meninas da Escola Normal. A porta da casa do juiz estava com a parte de cima entreaberta. O pequeno barulho chamou a atenção da “piniqueira”, fofoqueira juramentada, chegada a “brechar” pelas frestas da janela para ver o movimento de moças e rapazes, veio de imediato ver o que estava acontecendo. Era uma senhora dos seus 40 anos beirando os 50.
       — O juiz está?
       — Dormindo.
       — Pois o acorde imediatamente. Diga-lhe que é um caso de segurança nacional e que merece a maior urgência.
       Entre sonolento e com cara de raiva pelo desaforo de ter sido acordado por aqueles insignificantes estudantes, e que só lhe davam trabalho, o juiz chegou-se a porta. Eram uns cabeças ocas e que só pensavam em sacanagem e perturbar a ordem, mas o padre estava com eles e, como toda cidade do interior, o vigário sempre merece respeito. Não tinha outra alternativa e já que o chamamento dizia respeito a segurança nacional tinha que ser atendido a qualquer custo.
       Chegou-se à porta da casa.
       — Entre seu vigário mas os rapazes gostaria que ficassem do lado de fora. Não quero barulho aqui dentro porque meu filho pequeno está dormindo.
       O vigário adentrou a casa e iniciou sua fala dizendo o problema criado por Zé do Bode e sua turma e que, aquela altura, não havia muitas alternativas. Os dois saíram da sala e foram para a calçada onde um número bem maior de estudantes os esperavam impacientes. Teriam que ir de imediato à casa do prefeito para depois saírem a procura do delegado. O juiz, que havia chegado há pouco tempo, ainda não estava acostumado com a falta de telefone e achava horrível quando tinha que caminhar. Não podia pegar seu carro, um dos poucos da cidade, porque tinha medo que os estudantes quisessem ir nele o que seria um absurdo e, certamente, o veículo se quebraria com tanto peso.

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