Reminiscências
sobre Francisco
Ainda tenho bem nítido em minha
memória o momento em que eu soube da existência de Francisco: Estava em casa
junto com tantos católicos, aguardando a eleição do novo papa, depois do
impacto que foi a renúncia de Bento XVI, gesto que sempre considerei
extremamente corajoso e despojado, quando minha mãe, na época ainda viva, falou
que tinham anunciado na TV “fumaça branca”. E logo depois dessa notícia, que me
surpreendeu por ter chegado mais cedo do que eu esperava, veio o nome do novo
papa: Jorge Mário Bergoglio, cardeal argentino, que adotou o nome de Francisco,
em homenagem a Francisco de Assis. Quando ele apareceu na sacada, me chamou a
atenção pelo rosto sorridente, que me lembrou João XXIII e João Paulo I, pela
bênção que dirigiu às pessoas e pelo pedido que fez: rezem por mim.
Fiquei muito satisfeito com a
nova eleição, sentimento que se repetiria nos dias seguintes com outras
notícias, como a de que ele preferiu uma cruz mais simples em vez de uma de
ouro, que deixou de lado o palácio apostólico para morar na Casa Santa Marta,
que continuou com seus próprios sapatos em vez de mandar fazer novos, ou que
foi pessoalmente ao hotel onde estava pagar a conta. Porém, logo se percebeu
que o novo papa seria “sinal de contradição”, e que ele não seria unanimemente
aceito: se seus gestos de humanidade cativavam cada vez mais pessoas, logo
divulgaram acusações de que ele teria colaborado com a ditadura militar
argentina, inclusive retirando sua proteção sobre dois jesuítas que foram
presos no período. Essas acusações me revoltaram pela leviandade com que eram
repetidas (inclusive por uma conhecida revista de esquerda que hoje o exalta,
mas naquela época publicou uma reportagem com o título “Francisco ou Pilatos?”,
da qual, pelo que soube, nunca se retratou), mas felizmente foram desmentidas por
autoridades como o prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel e pelo padre alvo
dos militares que ainda estava vivo. E numa reviravolta irônica, descobriu-se
anos depois que foi o autor da acusação, o jornalista Horatio Verbitski,
proprietário do site “Página 12”, quem colaborou com os militares.
Superado esse mal-estar inicial,
Francisco foi empossado e, para conhecer mais sobre ele, comecei a comprar
todos os livros que podia a seu respeito, ficando cada vez mais fascinado com o
que descobria. Em um deles, fiquei encantado ao descobrir que, além do amor ao
tango e à música clássica, o filme preferido dele era “A festa de Babette”, a
obra-prima de Gabriel Axel, inspirada num conto de Karen Blixen, sobre uma
criada francesa que mora num país eslavo e, após receber um bilhete de loteria,
decide homenagear suas patroas preparando um jantar francês para elas e sua
comunidade, e aquele jantar transformaria a vida daquelas pessoas desencantadas
e sem esperança. Outra coisa que me marcou foi quando li num livro de
entrevistas uma declaração sua, onde dizia que, quando dava esmolas, fazia
questão de tocar na mão da pessoa e olhar em seus olhos, reforçando que apesar
da miserabilidade ele ainda era um ser humano e deveria ser tratado com toda a
atenção e cuidado que um ser humano merece. Duas declarações que me mostraram
que, definitivamente, aquele homem tinha uma sensibilidade incomum, e ela
deveria ser levada em conta. E isso seria reforçado meses depois, quando ele
veio para o Brasil participar da Jornada Mundial da Juventude, ocasião em que
participou dos eventos agendados com o papamóvel aberto e, quando tinha de
entrar num carro, fazia questão de deixar as janelas abertas. Como eu me
preocupava quando o via assim tão vulnerável às ações de um atirador de elite,
sem imaginar que essa seria sua praxe nos anos seguintes...
Anos esses em que Francisco se
mostrou, como bem disse meu amigo Romero Venâncio, professor da UFS, o maior
estadista da Europa e sem dúvida um dos maiores do mundo. Além do cuidado que
ele tinha com temas da atualidade em seus documentos e encíclicas (a Laudato Si
e a Amores Laetitia estão entre os textos mais relevantes da atualidade, eu me
arrisco mesmo a dizer que eles serão estudados no futuro além das fronteiras do
Catolicismo), era desconcertante ver um papa que citava Vinicius de Moraes, ao
invocar o conceito de “Cultura do encontro”, que respondia a todas as perguntas
que lhe faziam sem receios, e que insistia não só na importância de se combater
a fome e o descaso com os idosos, mas que unia ações efetivas a esses apelos,
como quando disponibilizou um palácio de Roma para ser usado por moradores de
rua. Um papa que não só defendia os direitos dos homossexuais terem famílias e
receberem bênçãos, mas que recebia com toda a distinção transexuais e casais do
mesmo sexo e apoiava ações de religiosos que trabalhavam com essas minorias. Um
papa que logo no início de seu pontificado realizou um jejum para combater um
conflito, tendo êxito, e nunca deixou de combater a guerra tanto quanto
combatia a desigualdade.
E um papa que, ainda assim,
confirmava o bordão de Nelson Rodrigues de que “toda unanimidade é burra”. Para
mim, que cresci sob o pontificado de João Paulo II e via como ele e Bento XVI
muitas vezes eram atacados de forma sutil ou agressiva pela imprensa laica, em
não raras ocasiões tendo suas palavras distorcidas de maneira a mostrá-los sob
um viés mais negativo, era chocante e até triste perceber que, ao contrário dos
dois, não seria fora da Igreja que Francisco encontraria seus piores
adversários, mas dentro dela. Sob os pretextos mais pueris, começaram a
aparecer padres, bispos e até cardeais questionando suas atitudes, sob o
pretexto de que ele estava “desrespeitando a Tradição”, e defendendo que se
voltasse ao modelo de Igreja anterior ao Concílio Vaticano II, como se este
fosse mais piedoso. E pior, muitos leigos cairiam nessa conversa, chegando
mesmo a insultá-lo, principalmente depois que ele começou a denunciar a
ascensão do fascismo no mundo e dizer com todas as letras que as máscaras de
piedade que essas pessoas usavam para convencer os outros eram falsas. Entre
outras coisas, porque são excludentes e a Igreja deveria ser um lugar de
“todos, todos, todos”. Para esses “pios”, um papa que falasse isso deveria ser
um “traidor”, um “herege” e “comunista”, mas embora ele soubesse desses ataques
e algumas vezes se referisse a eles, nunca lhes deu demasiada atenção.
Não que a imprensa tenha sido
sempre justa com ele. Em não raras vezes, esse compromisso com os miseráveis e
as minorias não foi bem visto, e a forma de combatê-lo foi, como no caso dos
papas anteriores, deturpando algumas de suas palavras e ações nos veículos de
comunicação. Mas se nem sempre ele atendeu às expectativas (sei que muitos se
decepcionaram por ele não ter conseguido realizar todas as reformas esperadas
ou por alguns documentos serem tímidos nessa seara, e cheguei a ficar magoado
com um amigo porque, diante de reportagens que descreviam de maneira
descontextualizada uma reunião que ele teve com o clero italiano, ele o rotulou
de homofóbico), aprendi a ver nele um homem que deveria ser lido nem tanto pelo
que falava, mas pelo que fazia. Gestos são muito mais efetivos que discursos, e
nenhum gesto dele me impactou mais do que aquela ocasião, no dia 27 de março de
2020, quando ele subiu sozinho os degraus da Basílica de São Pedro até o local
onde se encontrava o seu querido ícone Salus Populi Romani e o crucifixo
milagroso da Igreja de São Marcelo e, no auge da pandemia de Covid-19, parecia
carregar o peso do mundo enquanto pedia a Deus pela humanidade. Infelizmente
nunca pude encontrá-lo em pessoa, mas fico feliz de que um amigo diácono, indo
a Roma, levou um exemplar autografado de meu livro “Confidências na Fé”, que
dediquei a ele, e entregou-lhe em mãos.
Francisco, nas palavras de São
Paulo, você combateu o bom combate, ganhou a corrida e guardou a Fé. Termino
este texto na esperança de que, parafraseando Milton Nascimento, qualquer
dia, amigo, eu volto a te encontrar.
Renan II de Pinheiro
e Pereira,
Advogado,
escritor, agente de pastoral e Secretário-Geral do IHGRN.
Parabéns, Renan. O Papa Francisco foi um homem gigante e um líder espiritual valioso.
ResponderExcluirFrancisca Joseni dos Santos - Professora
O trecho dos sapatos, na minha opinião, sintetiza Francisco perfeita e completamente. Quando li a respeito à época, pensei logo no livro "As sandálias do pescador", de Morris West, e tive a certeza de que aquele seria um grande papa. E o foi! Um gigante, todo ele ternura.
ResponderExcluirParabéns querido Renan, por colocar de maneira tão apropriada (parece exagero usar o “tão”), mas em tempos de muita incompreensão e de interpretações tendenciosas, o que você escreve sobre o Papa Francisco denota a humildade que foi sempre mister nele - Papa do povo - independente até mesmo de credos que alguns povos professam!
ResponderExcluirUma homenagem tocante ao Papa Francisco, que narra a trajetória de sua eleição e os impactos de seu pontificado, sob a perspectiva de um fiel e fã. A simplicidade e a sensibilidade de Francisco, desde gestos como usar uma cruz simples até sua empatia com os marginalizados, têm, de fato, um aspecto cativante. Texto bem escrito e rico. - Gilberto Cardoso
ResponderExcluirLindo texto, Renan! Papa Francisco é um exemplo que morará pra sempre em nossos corações.
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